segunda-feira, junho 01, 2015

NUtrição

Estou convicto que a esmagadora maioria da população que integra o tão aclamado mundo civilizado entrou numa espiral toxicómana quase irreversível.
Não no sentido pesado do vocábulo, mas numa variante subliminarmente mais perigosa, apesar de aparentemente inofensiva.
E, por julgar de tal modo ameaçadora esta calamidade, considero hoje justificar-se a manifestação pública de uma opinião, que será sempre muito mais do que um aconselhamento (que esses, em ambiente não familiar, devemos reservá-los para quando tal nos é solicitado).
Assiste-se, neste século vigésimo primeiro da era cristã, a uma proliferação desenfreada de cursos, pós-graduações, mestrados, doutoramentos, pós-doutoramentos e outros graus académicos conexos destinados a estudar, aconselhar e fazer implementar uma série de medidas e ações que ilustrem a forma correta de alimentar a máquina infernal em que se tornou o corpo humano.
Infernal sim, porque inferniza no sentido literal do termo a sociedade moderna, com acumulação indesejável  e inestética de gordura, na maior parte dos casos, ou com ausência total da mesma em alguns outros, doentios, mentalmente toldados pelas medidas ficticiamente carnais do corte e costura digital que povoa as revistas da feminilidade.
A inteligência da humanidade tem destas contradições que desvirtuam completamente o conceito intelectual em si mesmo, pondo em causa a repetição da palavra sapiens na catalogação de espécies que, "sabiamente", à natureza auto-impusemos.
Seria apelidado de palermita aquele que quisesse padronizar, para cada ser humano, a quantidade de ar a inalar em cada inspiração, escravizando a população a uma contagem de litros diários, apenas com o intuito de que o corpo se mantivesse são, onde a mente há muito tinha certamente deixado de o ser.
Mas é apelidado de sumidade aquele que ensina a contar calorias diárias, de modo a que o corpo se mantenha são e, simultaneamente, mantendo viva a ilusão de que a mente também assim se manterá.
Na verdade, a (in)sanidade não é maior do que aquele que ocupar o seu tempo a permanentemente contar e registar o número de batidas do seu coração, ao longo de toda a vida útil deste órgão..
A alimentação é um ato que quase deveria ser considerado reflexo, de tão irrelevantemente importante que é para a nossa sobrevivência. Irrelevante porque pobre da sociedade que ao invés da elevação espiritual se entretiver com imbecilidades deste tipo. Importante porque nos impede de prematuramente extinguir o projeto de consciência que almejamos desenvolver ao longo da nossa curta existência.
Há alguns anos defendi a saída humana da cadeia alimentar convencional, eliminando na totalidade este problema de alimentação da fornalha orgânica, através da ingestão (ou libertação contínua, no caso de sistemas previamente inseridos no corpo) de substitutos sintetizados que permitissem à humanidade ganhar tempo para o que é realmente importante no seu padrão evolutivo.
Estamos muitíssimo longe desta realidade, é certo, o que não nos pode impedir de perseguir o mesmo objetivo, com os meios atualmente ao nosso dispor.
O que nos impediu durante tantos séculos de evoluir foi, nada mais nada menos, o facto de quase toda a nossa capacidade de processamento intelectual se destinar à preservação da espécie através da busca contínua de alimentos. Ultrapassámos há muito este obstáculo, mas curiosamente criámos outro, de si derivado, que consome quase tanta capacidade de processamento, que mais não é que o combate às consequências nefastas da excessiva ingestão de alimentos face à necessidade diária deste conjunto de seres vivos que deixaram de conhecer predadores dos quais fugir!
O facto de comermos em excesso pode remontar aos primórdios civilizacionais, em que este racional era utilizado pela razão da incerteza quanto à origem, tempo e localização da refeição seguinte.
Esta é a razão romanceada.
A razão que choca e dói é que nos tornámos viciados em comida, como um qualquer toxicodependente que anseia sempre por mais um pouco da sua substância psicotrópica favorita. E, como eles, sofremos do síndroma de abstinência, não porque o corpo da energia necessite, mas porque o cérebro assim o ordena (culpemos as enzimas ou culpemos Freud, é pouco relevante).
A propriedade com que disserto acerca deste assunto não se associa a qualquer inscrição na ordem dos médicos, enfermeiros, nutricionistas ou dietistas. É, apenas e só, a experiência de vida de quem, aos quarenta, se mantém biometricamente igual aos dezoito, sem nunca se ter preocupado com uma só restrição ou dieta na sua vida.
E o segredo?
A palavra preocupação ou, neste caso, a falta dela!
Todos sabemos, intrínseca ou extrinsecamente, aquilo que nos faz bem e o que nos faz definitivamente mal.
A nossa Nação teve a felicidade (e a sabedoria) de construir um modelo de alimentação que faz inveja a todos os restantes povos do mundo. A famosa dieta mediterrânica mais não é que a tradição familiar centenária de comer sempre sopa, comer sempre salada e comer sempre fruta... com carne, peixe e outros derivados animais a compor o acolhedor quadro que nos fará sempre lembrar a casa dos nossos ancestrais.
Então porque não o aplicamos?
Porque nos tornámos preguiçosos.
Porque transportámos essa preguiça para a falência na educação dos nossos filhos. Porque é mais confortável ceder a uma birra, choro ou gritaria do que manter a firmeza de quem está convicto de que este será o melhor legado que lhes dará.
Porque fazer uma sopa dá trabalho... porque fazer uma salada dá trabalho... e não, não é, e suspeito que não será nunca mais caro fazer uma alimentação saudável do que uma plastificada!!
Se fizermos crescer as nossas crianças num ambiente "alimentarmente" saudável, elas crescerão a inconscientemente saber quanto mais têm que comer para compensar os gastos desportivos, e quanto menos têm que comer para compensar a inatividade televisiva.
Se nunca os privarmos, na proporção saudável, dos prazeres adocicados da sociedade moderna mas, simultaneamente, sem hipótese de renúncia, lhes apresentarmos todos os recursos "salgados" ao nosso dispor para uma alimentação equilibrada, crescerão capazes de autonomamente fazer as escolhas certas, quando voarem solo, longe dos seus progenitores.
Quanto a nós, tal como um drogadito, temos que fazer uma desintoxicação, física mas especialmente mental, começando pela ausência espiritual de preocupação com gramas, calorias e hambúrgueres, pela negação do reflexo salivar pavloviano ao som das palavras McDonald's e Coca-Cola e passando, isso sim, pela reaprendizagem do inolvidável cheiro a legumes acabados de cozer, mas também pela abdicação do seguimento de regras dos gurus do momento, que lhe dirão que deve comer setenta e duas vezes ao dia e beber dezoito litros e meio de água a cada seis horas (como se a sede não fosse regulador suficiente da ingestão de líquidos no organismo) e maldizer o pão e maldizer as batatas e maldizer a carne vermelha e maldizer a carne azul e branca e maldizer os peixes gordos e maldizer os peixes magros e, naqueles cuja loucura atinge o expoente máximo... maldizer esta, aquela ou todas as frutas?!!!
Deixe, de uma vez por todas, os batidos, os comprimidos, os chás (que não os sociais), deixe a dieta da lua, das cores, da luz, do tipo sanguíneo, das três horas, dos 17 dias, de Atkins, Dukan, de Los Angeles, de South Beach, de Cacilhas ou da Buraca e dedique-se, tão só... a (re)aprender a VIVER!
 

terça-feira, setembro 16, 2014

I Hope the Russians Love Their Children Too

O meu amor desafiou-me para que identificasse publicamente os pedaços de autor que mais me tivessem tocado ou impressionado.
A rede social global pareceu-me desadequada para cumprir esta tarefa, porque gatinhos a ronronar, tropelias juvenis e quedas hilariantes rimam pouco com a seriedade que o assunto requer.
E também porque, todos sabemos, conjuntos de palavras com mais de cento e sessenta caracteres sem vídeo começam a constituir-se como spam em enormes franjas da população que toma a preguiça como amiga e a passividade intelectual como modo de vida.
Não é fácil a tarefa, nem tão pouco isenta de riscos.
A nossa relação com a escrita cola-nos, invariavelmente, a correntes de pensamento, mostra aquilo de que gostamos e com o qual nos identificamos, o que, nem sempre, poderá estar alinhado com o consumo de massas e com a padronização de gostos que a sociedade suavemente nos quer incutir.
Assumindo essa vulnerabilidade, decidi fazê-lo neste fórum, curiosamente onde já tinha, há muito tempo atrás, colocado alguns dos livros da minha vida.
Surpreendentemente, não foi de nenhum deles, autor ou criação, que povoou a minha mente quando decidi elaborar mentalmente a famigerada lista.
Um poema em inglês ribomba no meu cérebro, repete-se vezes sem conta... eu, que tantas vezes me recusei a ler obras que não as da minha língua materna, convicto de que só assim aprimoraria e honraria uma das mais poderosas armas da nossa nacionalidade...
... e o poema que não cessa de eclodir, reverberando em cada centímetro do meu corpo:

I Know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan's poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.

Impressionante a lucidez de quem veste a pele do Major Robert Gregory e encarna a posição de um aviador que, na Primeira Guerra Mundial antecipa o seu trágico destino, numa luta que não é a sua, num desfecho que, independentemente de qual seja, será irrelevante para o destino do seu povo.
Hoje, mais do que nunca, me pareceu este poema apropriado.
Quem são aqueles que amamos?
Quem são aqueles que guardamos?
Quem são aqueles contra quem lutamos?
A segunda e terceira pergunta não têm uma resposta permanente, o inverso da primeira, que nos faz querer existir todos os dias da nossa vida.
Amamos aqueles que guardamos? Guardamos aqueles que amamos?
Todos quantos vivem e não sobrevivem se deveriam questionar e resolver dentro de si esta ambiguidade que, não o sendo, pode levar à manipulação dos que sobrevivem sem viver, com consequências biologicamente irreparáveis em quem, aguerridamente, ama... e guarda... e não odeia.

Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight,
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

Brilhante, na constatação do que acabo de descrever.
O inebriante mas alucinantemente perigoso prazer, inenarrável a quem nunca dançou com as nuvens, aliado à ausência de valores pelos quais erguer a voz na adversidade, à irrelevância da existência sem alguém a quem amar e guardar, conduz a uma mistura explosiva de exposição ao perigo e potencial exploração por aqueles, poucos, que lutando, jamais lutarão, oferecendo a milhões, placidamente, o derradeiro sacrifício sem que a ele alguma vez se exponham.
Poderosíssimo poema, poderosíssima escrita que, reconheço, não pode ser traduzida sem perder parte da magia que encerra.
William Butler Yeats, o meu respeito, a minha admiração e a constatação de que a poesia tem necessariamente que ser a maravilhosa exceção na pouco flexível regra de que a Língua da minha vizinha é muito pior do que a minha!

Afonso Gaiolas
 

sábado, setembro 13, 2014

Transcendência

Transcendência.
Que excede os limites ordinários, sublime...
...
"Talvez tivesse sido inevitável, a colisão entre a Humanidade e a tecnologia".
A frase que mais me ecoa na mente, um dia depois de assistir ao novo filme do realizador Wally Pfister - Transcendence.
...
Será esta a palavra que prevalecerá? Inevitabilidade?
Será que, ao invés de confronto, poderemos assistir a uma sã co-existência no despontar da nova era?
Na minha opinião, tudo dependerá da relação direta entre a evolução tecnológica e a velocidade evolutiva do altruísmo Humano.
Não estranhamos que, ao Homo Sapiens, tivesse sucedido o Homo Sapiens Sapiens. Estranharemos então que não sejamos o fim da linha, e que ao Homo Sapiens Sapien suceda uma evolução híbrida biológica e sintética, cuja principal característica seja a consciência global e a conexão entre todos os seres da mesma espécie?
Duas questões se colocam agora, ambas diretamente relacionadas com a velocidade evolutiva do altruísmo humano que há pouco falei.
A primeira delas é da própria criação. Que mente, e sob que desígnios se criará o código-fonte que guiará toda a humanidade ao passo seguinte?
A segunda tem a ver com a inclusividade. Será a amostra global, ou segregar-se-ão elites parciais, que subjugarão... ou eliminarão, qual versão extinta dos Homo Neanderthalensis, os seres humanos excluídos deste processo?
Percebem agora a urgência da velocidade evolutiva do altruísmo humano superar a da evolução tecnológica?
Será fatal entregarmos a responsabilidade de tal salto evolutivo a corporações que executem algum tipo de seleção baseada em critérios imbecis que eventualmente o não possam parecer à luz do pensamento coletivamente histérico vigente na segunda metade do século XXI.
Quanto ao segredo desta transição quase religiosa da criação, ele pode residir na imperfeição natural humana.
Li-o há muitos anos e nunca me esqueci, a respeito do conceito de criação, que qualquer coisa que se consiga replicar, está viva. Não será necessariamente verdade, como descobriremos a breve prazo com as máquinas mais evoluídas. Mas, mais importante que permanecer vivo, será possuir consciência de si e do Universo, condição necessária para que deixe de ser tolerável desconectar a fonte de energia, qualquer que ela seja, que sustente este ser.
E para este problema, aparentemente insolúvel não obstante todos os esforços da comunidade pensante mundial que não se deixou castrar pela religião, a solução pode estar em Sebastopol, pelo prisma de Lev Tolstoi.
Somos todos bons, somos todos maus.
Percebi que reside nesta capacidade/defeito a impossibilidade atual de criar uma auto-consciência. O atual sistema binário de codificação e descodificação não permite que a metade exista. Tudo é preto ou branco, zero ou um, sem derivações. E esta lacuna não se coaduna com o aparente paradoxo de simultaneamente sermos bons e maus, pretos e simultaneamente brancos, mescla de cinzentos que derivam ao sabor do humor, do clima, das condicionantes sociais ou das vontades animais.
A beleza de encadear um conjunto de palavras e, derivando apenas a entoação, fazê-las ter significados totalmente díspares. A subliminaridade de fazer variar todo o significado vocabular... apenas com uma variação da expressão facial. O anjo negro que paira sobre todos nós e nos faz tremer, de quando em vez, arrepiados com a imperfeição humana intrínseca que nos envergonha por a ela não conseguirmos escapar.
Os cientistas vogam numa corrente de filosofia matemática, falhando na expressão artística da falsa aleatoriedade daquilo que em vão tentam recriar.
Criaremos novas entidades quando percebermos que os zeros e uns não são solução.
Evoluiremos quando, assumindo as nossas vulnerabilidades humanas, deixarmos que a Natureza Universal siga o seu curso e o seu plano global e cedamos lugar à evolução seguinte.
Transcender-nos-emos no dia em que finalmente compreendermos a arquitetura Universal e o seu propósito. Ainda que, para grande surpresa nossa, descubramos angustiados poder não nos estar destinado o papel principal.
E então... começar tudo de novo... tornando-nos Arquitetos.

segunda-feira, janeiro 20, 2014

Sexualidades


Sete mil, duzentos e sete milhões de seres humanos a povoar o planeta Terra.
Quantos destes milhares de milhões de seres foram fruto de relações homossexuais?
Nenhum.
E o que é que isto significa?
Vou tentar responder a esta pergunta e simultaneamente expor(-me) a minha visão sobre todos os assuntos que lhe são conexos, mesmo correndo o risco de ser crucificado pelos extremistas que se recusam a encadear duas frases consecutivas acerca deste tema, sem bramir impropérios da pior espécie.
O fator incontornável que nos liga a este planeta e a todo o cosmos, é a biologia. É-nos subrepticiamente requerido que nos reproduzamos, está-nos impregnado em todas as moléculas do nosso organismo. E é esta maravilha da psicologia auto-sugestiva que nos fez vingar como espécie, pois todos sabemos que a ausência de renovação rimará sempre, na escala cósmica de seres mortais, com extinção!
Começando com este racional primário, é indefensável colocar a heterossexualidade e a homossexualidade no mesmo patamar, pelo simples facto da primeira ser ainda imprescindível à continuação da espécie humana.
“Ainda” é a palavra-chave que me vai salvar do rótulo prematuro da homofobia.
Há muitos anos atrás, comecei a juntar num caderninho uma série de ideias soltas acerca de tudo e de nada. Pedaços de divagações, mais ou menos concretizadas ou detalhadas, que pudessem contribuir para algum avanço civilizacional futuro, ou simples constatações de necessidades evolutivas, à data originais (ou pelo menos assim pensava).
Uma delas relacionava-se com a conceção e desenvolvimento do feto em ambiente extra-uterino.
Perguntam-me pois, qual a relação entre este e o assunto delicado sobre o qual hoje me debruço?
É que, a concretizar-se a minha “meia profecia” (a fertilização in vitro era já uma realidade desde 1978), quebra-se definitivamente a barreira psicológica da dependência de sexos para a continuação da espécie humana. Estamos naturalmente muito distantes do dia em que a ciência nos oferecerá a possibilidade de mesclar o material genético de dois indivíduos do mesmo sexo, associando-o a material orgânico indiferenciado, artificialmente sintetizado, de modo a eliminar a necessidade da existência de diversidade sexual. Ainda assim, no despontar desse dia, mantendo a convicção que a diversidade é a mãe da evolução, manterei a minha defesa convicta na discriminação positiva à heterossexualidade.
Biologicamente falando, portanto, à luz do conhecimento humano atual, não me restam dúvidas da necessidade social de proteger a heterossexualidade como meio preferencial na evolução da espécie. Um pouco como o exemplo que nos é oferecido pelo incesto, socialmente reprimido e reprovado ao longo dos séculos, após a constatação de que a homogeneidade provocaria invariavelmente aberrações biológicas.
Mas, ao contrário do exemplo que acabo de dar, no caso da homossexualidade deve ser a palavra tolerância, ao invés de repressão, a combinar com este conceito. O que não poderá significar nunca igualdade.
Ultrapassada a questão da geração, entro agora na questão mais atual da sociedade portuguesa, que tão perto de referendo se encontra e que tão mal discutida tem sido (lá voltam os extremistas inflamados de ambos os lados a ocupar o tempo de antena e o protagonismo que devia ser pertença das vozes serenas).
A educação.
Adoção, co-adoção e outros conceitos encontrar-se-ão permanentemente subjugados à palavra educação!
E também aqui, como em tudo na sociedade, há que hierarquizar as opções numa escala de valores.
A sociedade deve reger-se segundo o padrão de evolução que a maioria deseja e que simultaneamente garanta a evolução moral e social que todos anseiam.
Um pai alcoólico e uma mãe toxicodependente educam tendencialmente pior que duas mulheres sãs que se amam?
De tão óbvia, a resposta torna desnecessária a sua verbalização!
Um pai violento e uma mãe violentada educam tendencialmente pior que dois homens que mantêm a harmonia conjugal no lar que partilham?
Repetição da jogada!
Contudo, não é legítimo que a questão se coloque nestes moldes.
A base comparativa tem que ser a mesma para que o raciocínio seja válido.
Em igualdade de circunstâncias, uma figura paterna e uma figura materna serão sempre, na minha opinião, a fórmula tendencialmente perfeita na educação de uma criança (faltarão necessariamente os irmãos!!). O balanceamento certo entre o sentimento de proteção, a fragilidade aparente, a coragem, a sensibilidade, a agressividade, a beleza, a rudeza, a calma, a força, a graciosidade… tudo se conjugará para que estes referenciais, mostrados pelo exemplo da diversidade sexual, tornem o projeto de Homem/Mulher um ser humano completo. E sim, pode ser que nalguns momentos da vida seja a graciosidade masculina, a rudeza feminina ou qualquer outra característica menos padronizada a prevalecer. No final, o resultado harmonioso será sempre melhor que o melhor que a monotonia de género poderá proporcionar, por mais esforço, dedicação ou amor que seja transmitido (e pode sem dúvida ser imenso!!).
Como operacionalizar então este conceito de inclusão, que aceita mas não iguala os conceitos?
Simplesmente pela discriminação positiva que referenciei há pouco.
Resumindo…
O casal homossexual deve poder unir-se e viver uma vida em comum, em igualdade de circunstâncias com um casal heterossexual?
Sem dúvida. Até porque o argumento da continuação da espécie para a diferenciação só seria válido, neste caso, se os casais fossem forçados pela sociedade a ter filhos, o que conferiria uma vantagem indisfarçável à heterossexualidade.
A este propósito devo referir que me sinto tentado a verbalmente açoitar a elite pensante do nosso país, que argumenta ser absolutamente necessário que as famílias tenham mais filhos… apenas porque o sistema de segurança social colapsará se não existirem mais indivíduos no ativo.
Parece-vos fazer algum sentido?
Alguns sentir-se-ão tentados a responder afirmativamente… que alguém lhes terá que pagar a reforma!!
Vamos então colocar a questão de outro modo.
Como se sentiria se tentasse explicar ao seu filho que foi concebido segundo um sentimento extraordinariamente altruísta, cujo único propósito seria o de pagar pensões aos velhos de então (que, já agora, por um acaso do destino delapidaram toda a riqueza do país enquanto novos, dançando ao jeito de cigarras e esperando que agora cumpra o papel de formiga, mas numa nova derivação, irónica, da fábula, em que a cigarra se mantém seu hóspede no formigueiro e ainda lhe dá ordens acerca de como proceder para que o dinheiro para a pensão não falhe!).
Regresso à questão fraturante deste texto.
Concordei que se devam dar apoios iguais às uniões de todos os tipos, conquanto o amor seja o denominador comum e o respeito mútuo prevaleça sobre o egocentrismo.
Contudo, não concordo, e já expliquei porquê, que nos privilégios da educação (e apenas de adoção de crianças se tratará, uma vez que apenas um tipo de união pode conceber naturalmente), se deem direitos iguais a todas as famílias.
Antes de abordar a opção da adoção, um pequeno parêntesis para dar a anuência tácita a barrigas de aluguer (ou espermatozoides de aluguer), que pelo menos ofereçam 50% do material genético do casal na descendência. Legítimo e justo. E infelizmente, a única opção tecnologicamente acessível aos casais homossexuais!
Na adoção, o caso muda de figura.
A sociedade, acreditando no dogma de vantagem relativa que há pouco descrevi, deverá escalonar os casais disponíveis para adoção de modo sequencial, dando primazia aos casais heterossexuais, seguido dos casais homossexuais e por último, pelos indivíduos (de qualquer dos sexos) que queiram iniciar uma família monoparental.
Uma vez atribuídas as crianças, os apoios à parentalidade devem naturalmente ser rigorosamente iguais, sem discriminação subsequente, de que espécie for, na proporção do número de filhos que a família desejar ter, punindo fiscalmente apenas as famílias que tenham decidido egoisticamente não fazer parte desta viagem Portuguesa pelos séculos, ou seja, abdicado de criar descendência.
Só assim poderemos, definitiva e coerentemente conviver com a diferença, mantendo a lucidez de sabermos exatamente para onde queremos conduzir a sociedade, solidificando-a nos valores de tolerância historicamente perenes da Nação Lusitana.
 
Afonso Gaiolas

terça-feira, janeiro 14, 2014

Heróis de Portugal


A Pátria Honrai, que a Pátria vos contempla!
Peço emprestado o lema à Marinha Portuguesa, porque é nele que revejo toda a argumentação subjacente ao assunto que a todos move desde a morte de Eusébio da Silva Ferreira.
E devia ser ele o único, porque quaisquer outros, ainda que muito bem fundamentados e adornados, não mais contribuirão que para envergonhar a memória dos ilustres ancestrais que forjaram a Nacionalidade e a mantiveram coesa ao longo de Novecentos Anos de História.
Entristece-me ver colocado ao mesmo nível o Fundador, figura paternalista da Nação Portuguesa e responsável pelo vislumbre da primeira tarde lusitana a um qualquer jogador de futebol, ou o Santo Condestável, o maior Guerreiro Português de sempre, símbolo da coragem e independência lusitana, a uma virtuosa artista vocal. Entristece-me que nos arrepiemos e se nos ericem os pelos da nuca quando se canta o hino… apenas se for antes de um jogo da bola.
É doentia a histeria coletiva em volta destes artistas contemporâneos que, à falta de feitos mais valorosos que voltem a dar o lustre e dignidade que Portugal merece, se tenta que artificialmente da lei da morte se vão libertando, num reconhecimento tácito da mediocridade de valores instalada na sociedade e nas elites que hoje conduzem o país.
Vejamos a sucessão de erros que conduzem a este inqualificável estado atual.
Ideal de Passos Manuel, validado pela Rainha D. Maria II, o Mosteiro dos Jerónimos foi, por decreto de 26 de Setembro de 1836, tornado Panteão Nacional.
O Panteão Nacional foi a fórmula encontrada para agregar e honrar num só local as figuras maiores da Nação Portuguesa, até então dispersos pelos mais variados locais do nosso país.
Posteriormente, este ideal foi alterado pela Lei n.º 520, de 29 de Abril de 1916, que consagrou a Igreja de Santa Engrácia como local definitivo para o Panteão, substituindo o local representativo do melhor da arquitetura Manuelina e do período áureo dos Descobrimentos.
Já em agosto de 2003, em regime de exceção, foi também reconhecido o estatuto de Panteão Nacional ao Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, local onde estão sepultados D. Afonso Henriques e seu filho, segundo Rei de Portugal, D. Sancho I.
Até aqui, tudo pacífico. Decisões consensuais e intelectualmente irrepreensíveis, conquanto adequadamente e sobretudo atempadamente se finalizassem as obras, que de tão demoradas ganharam estatuto de expressão popular.
Analisemos agora os detalhes…
No século XIX, os Portugueses de então decidiram, sabiamente, que apenas o teste à erosão do tempo permitiria uma opinião isenta e sem qualquer carga emocional ou romântica acerca do mérito absoluto (mas também relativo) de cada Português a ser elevado ao Estatuto de Herói Nacional. Decidiram que quatro seriam os anos necessários após a morte, para que os Portugueses validassem a entrada em tão ilustre última morada.
Os Portugueses do Século XXI, muito mais sábios e intelectualmente superiores… decidiram que, ao invés de quatro, bastava um ano após a morte para que a trasladação do corpo pudesse ser efetuada e, desvirtuando todo o espírito do legislador inicial, no caso de Eusébio, tomaram a decisão quanto ao mérito, ainda a missa de sétimo dia não tinha sido celebrada.
Quais os riscos destas decisões?
Que seja a comoção e não a racionalidade a tomar a decisão… ou que a pressão popular o faça, que as eleições estarão sempre à distância de uma dança de cadeiras.
Todos sabemos que as pessoas tendem a tornar-se muito melhores quando perecem, que todas as suas qualidades são exponenciadas e os seus defeitos menorizados ou suprimidos. É inevitável, a beleza da condição humana também se constrói neste perdão póstumo que a todos nos expurga dos pecados terrenos. Mas a consciência desta nossa fraqueza deve impedir-nos de tomar decisões apressadas, toldadas de irracionalidade emocional, das quais nos venhamos a arrepender no futuro.
E para que possamos justamente minimizar estas injustiças relativas, convém então conhecer as regras, o padrão requerido para que o estatuto de herói seja enfim  merecido.
A lei nº28/2000 de 29 de novembro auxilia-nos na resposta. Diz o número um do artigo segundo da referida lei, que as honras do Panteão se destinam a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.
Concordo em absoluto.
Mas as pessoas valem como um todo. E holisticamente devem ser considerados os seus atos ou comportamento, para que se possam tornar uma referência para todos os Portugueses que lhe sucederem.
Ser um grande jogador de futebol é suficiente?
Ser uma grande cantora é suficiente?
Para ambos a resposta só será afirmativa se, aliado ao virtuosismo do seu talento, estiver um ideal de serviço patriótico e uma conduta moral e social consentânea com o ideal anteriormente descrito, acima de quaisquer interesses pessoais ou corporativos.
Não penso que, nem num nem noutro caso, Amália e Eusébio, se reúnam estas condições. Perdoem-me os familiares, os amigos ou os seus simpatizantes, mas Portugal tem necessariamente que ser maior que o indivíduo, sem tendencialismos.
E o mesmo se aplica, por coerência de raciocínio, a Aquilino Ribeiro. Num tempo presente em que os fins nunca poderão justificar nem desculpar os meios, não pode ser admissível ser atribuído o estatuto de Herói de Portugal a um português que praticou atos terroristas, atentando contra a vida de outros portugueses (atentado de 28 de novembro de 1907, preso em flagrante delito… portanto, mesmo que se não queira aliá-lo diretamente ao regicídio, tamanha atrocidade me basta…), quaisquer que eles fossem, por motivos ideológicos e de oposição ao regime vigente. Ainda que fantástico escritor romântico, inegavelmente um dos melhores da sua geração…
Por outro lado, não parece lógica nem racionalmente explicável a trasladação do corpo de Almeida Garrett, em dezembro de 1966, do Mosteiro dos Jerónimos (Panteão Nacional à data do galardão honorífico) para o novo Panteão, na Igreja de Santa Engrácia. Percebe-se a permanência de toda a Realeza no Mosteiro dos Jerónimos (para que, se fosse esse o critério, o olhássemos tacitamente como Panteão Real), mas nele permaneceram Alexandre Herculano e Fernando Pessoa. Não incluo Luís Vaz de Camões neste grupo, porque concordo que o seu tempo e lugar serão sempre os Jerónimos.
Como irracional é o argumento da falta de recursos financeiros para a não trasladação dos restos mortais de Manuel da Silva Passos (Passos Manuel) e do compositor Carlos Portugal, depois da decisão de atribuição de tais honras ter sido tomada. Que vergonhoso é o argumento monetário, conhecida a gestão incompetente das contas públicas das últimas décadas, para que não se honrem os melhores exemplos da nossa Nacionalidade.
A este propósito apenas me apraz referir a famosa declaração de princípios de Passos Manuel, que servirá para envergonhar as elites contemporâneas que o preteriram, em prol de mais uma ou duas autoestradas no litoral, com custos para todos, menos para quem toma as danosas decisões:
“… E eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política.”
Como se poderá alguma vez explicar que, depois de proteladas as honras devidas a estes dois portugueses, apenas pela mesquinhez de não atribuição de fundos à tarefa, se trasladarão os restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen e os de Eusébio da Silva Ferreira (terão as duas personagens anteriores sido esquecidas… ou eliminadas da lista… seguramente subalternizadas, mesmo que tão só por desconhecimento, esquecimento ou incompetência pura)?
Como não incluir o médico, neurologista, investigador, professor, político e escritor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1949, prémio para o qual foi nomeado por Cinco (5) vezes ao longo de duas décadas, numa área técnica e do conhecimento científico tão concorrencial e disputada? Talvez porque a assunção deste mérito destacasse outros méritos ao Portugal desta época, que insistentemente esta geração de fazedores de opinião tenta ofuscar.
Por oposição, parece-me no mínimo controversa a decisão “unânime” de inclusão no Panteão do Marechal Humberto Delgado, bem como a ausência sequer de discussão quanto à possível inclusão de António de Oliveira Salazar. Sim, ele mesmo, um dos portugueses do século XX que mais representa a filosofia do Servir sem se servir, o obreiro do milagre do superavit no ano de chegada às finanças públicas após décadas de desvario monetário e do crescimento anual contínuo do PIB ao ritmo de quase seis por cento ao ano, exponenciando todos os índices económicos portugueses, a nossa balança comercial e salvando o país da bancarrota, tudo isto sem endividar o país por cinco gerações, a única altura do Portugal contemporâneo onde o escudo, nacional e ultramarino, pôde ombrear com a libra ou o dólar e apresentar-se com orgulho ao mesmo nível que qualquer outra potência mundial, com a dívida em percentagem do PIB a descer de aproximadamente 85% para menos de 15%. Tudo isto e, no fim da sua vida (ou durante), não se ter descoberto uma única conta sua na Suíça, nas Ilhas Caimão ou no Liechtenstein. Tudo isto sem ter aceite ações ou quaisquer outros bens (i)/mobiliários de nenhum banco, instituição ou empresário de renome em troca de favores diretos ou encapotados.
Ainda que, em jeito de balanço (e pela força da coerência que anteriormente defendi), se possa concluir que o lado negro do regime do Estado Novo e tudo o que de pior ele representou, a censura, o autoritarismo, a ditadura ou a perseguição política possa suplantar as virtudes da sobreposição do valor comum e patriótico aos valores individuais e sectoriais, e ser assim negada a este cidadão português a entrada nas portas do Panteão.
Propositadamente alimentei esta última discussão, sei-a terrivelmente inflamada no interior de cada português gerado e criado no coração do Estado Novo, mesmo que sem concurso televisivo à mistura. Mas é sempre importante lembrar que a História é contada (e romanceada) pelos vencedores, e nunca vista e contada pelos olhos dos vencidos.
De uma forma ou de outra, uma sucessão e acumular de incongruências que revelam um desnorte (ou um norte não consentâneo com a agulha magnética que deve reger os destinos da Nação Portuguesa), tanto de quem tem poder decisório, como de quem não se insurge contra o tendencialismo, seja ele republicano, monárquico, populista, benfiquista, de cariz puramente político-partidário, corporativista do protetorado das sociedades secretas ou qualquer outro.
Regresso à lei nº28/2000 de 29 de novembro e ao que me parece o cerne de toda a questão. O problema não são os critérios, que de tão vagos se dobram à medida das vontades, o problema são as pessoas que se arvoram no direito de tomar tais decisões. O ponto um do artigo terceiro, muito convenientemente, atribuiu competência exclusiva à Assembleia da República na concessão de honras do Panteão Nacional. Pergunto-vos eu, alguma das bancadas parlamentares correria o risco de perder o voto dos milhões de amantes do futebol (e de um certo clube de bairro), questionando, nem que fosse a simples voracidade da tomada de decisão de proporcionar estas honras a Eusébio? Em duzentas e trinta almas, todos concordaram sem reservas que os filhos da Nação o deveriam olhar como modelo de Português a seguir por todas as gerações vindouras, igualando em mérito Fernando Pessoa ou Pedro Álvares Cabral?
E se, ao invés de cinco que pensam por duzentos e trinta, que pensam por único e exclusivo interesse partidário ao invés de patriótico (… e eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política. Lembram-se?), dizia eu, e se esta decisão estivesse nas mãos de uma Comissão de Ética e Valores Nacional, com representantes das mais ilustres áreas do conhecimento, que se dedicasse, sem pressões corporativistas de qualquer espécie, à avaliação do mérito absoluto de cada ilustre Português falecido, passados não um mas Dez anos, à luz de todos os critérios necessários e que fizessem jus à honra de ombrear com os monstros sagrados de Portugal D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, ou o Rei dos Reis, o responsável por toda esta aventura quase milenar… D. Afonso Henriques.
Pessoalmente, questiono-me ainda a razão da desigualdade proporcional na quantificação de personagens consideradas ilustres, em oitocentos anos de História, quando justificámos a presença da Esfera Armilar na nossa bandeira, quando fundámos a Globalização, quando demos mundos ao Mundo, e os últimos quarenta anos, onde parece ser fantástica a proliferação de meritórias personagens e, simultaneamente, nos afundámos como país soberano e dono dos nossos destinos, a um ritmo só igual à escalada da dívida pública e da assimetria na distribuição da riqueza em Portugal!
E, de uma vez por todas, não mais ter medo de defender opiniões, ainda que contrárias à modelação silenciosa a que nos forçam, de modo a que placidamente aceitemos que os lobos convivam entre os cordeiros e os, anestesicamente, descarnem ainda em vida.

Afonso Gaiolas

sábado, junho 01, 2013

Beijo de arrependimento

Revendo o clássico de 1998 "Meet Joe Black", esbarrei com a egnimática frase de Anthony Hopkins, a minutos de ser levado pelo anjo da morte, enquanto se despede de sua filha:
"Sem remorsos!", que simultaneamente quererá dizer sem ressentimentos, que do mesmo modo poderá significar sem arrependimentos...
E conclui... verbalizando a constatação da beleza de tão simples sentimento.
Este diálogo de cinco emotivos segundos força-nos a pensar que podemos e devemos fazer jus à capacidade cognitiva humana, e esforçarmo-nos por aprender com os erros, mas sobretudo com os ensinamentos de todos os outros que nos precederam e nos tornaram um pouco melhores que si próprios.
Mas de que modo poderemos anular o arrependimento de tantos milhares de milhões de potenciais atos e ações falhadas das nossas vidas?
De tantas horas de tantos dias de tantos anos de decisões, indecisões, conquistas e perdas, venturas e desventuras. Como não cometer erros dos quais nos arrependamos no dia do balanço final, conscientes de os termos assim tomado ou inadvertidos, fruto de infeliz ingenuidade temporal?
A religião é, paradoxalmente, a chave desta aparente impossibilidade.
Existe um caminho fácil e existe O caminho.
Ao invés do expectavelmente óbvio, ao longo dos anos em que fui arrumando as minhas ideias e convicções, percebi que o caminho da religião era afinal o caminho fácil.
E passo a explicar (repetição da jogada, pois já o fiz em artigo anterior).
As pessoas são naturalmente instintivas, e isso leva-as a condicionar as suas ações, face a desafios de elevado stresse ou que façam perigar a sua sobrevivência,  por atos que parecem ruins e perversos à luz do padrão moral que a sociedade pretendeu, ao longo de sucessivas gerações, implementar.
O instinto tem outra característica peculiar. Tal como um curso de água procurará o percurso mais fácil que o leve ao objetivo final - um abraço com cheiro a maresia, também o ser humano procurará naturalmente a maneira menos penosa que o mantenha vivo e o faça prosperar. Ainda que se cometam as maiores atrocidades físicas e psicológicas pelo caminho.
Quer isto dizer que o Homem é intrinsecamente mau?
Sob este ponto de vista, Sim!
Fruto deste reconhecimento, foi criado pela elite intelectual, há alguns milénios atrás, um conceito que sobreviveu ao teste do desvanecimento temporal... a ideia de um ente omnipotente e omnipresente que tudo controla e tudo julga, e cujo propósito último foi forjar um conceito de juízo final face aos nossos atos em vida, em jeito de balanço moral da existência de cada um.
Fácil, pois, será forçar alguém a ser bom, se o ameaçarmos com uma eternidade de labaredas, caso se desvie do padrão pré-estabelecido de sã convivência e moralidade social.
Difícil... difícil é decidir continuar a ser bom, ainda que ninguém, no final, teça um juízo qualitativo do seu padrão de comportamento em vida.
Difícil é contrariar o imobilismo, o individualismo, o narcisismo... e perceber que a maior recompensa não é, no final, sentar-se à direita de ninguém, mas permanecer como uma doce memória em todos quantos pôde tocar, por umas horas, por uns dias, por uns anos... ou toda uma vida.
Arrependimento...
Encare a vida como uma missão, e o arrependimento não terá lugar no seu léxico corrente.
Não se desvie da sua missão, não deixe que nada nem ninguém o desviem nunca da sua missão de vida.
Renove a cada dia o seu comprometimento para que a missão jamais possa ficar comprometida.
Ser mau e deixar correr a natureza impiedosa que flui dentro de si pode eventualmente trazer-lhe um prazer imediato, mas a bondade trar-lhe-á uma felicidade e bem-estar interior perenes, que o preencherão para  o resto da sua vida.
Não se arrisque nunca a passar pela angústia de temer que a expressão do seu eu se tenha sobreposto ao amor pelos seus, qual matriarca em Quinze pontos na Alma.
Não tenha que se arrepender, no final, dos sorrisos que não ofereceu, das brincadeiras que não brincou, do amor que não partilhou, das perigosas aventuras que não viveu, das árvores que não plantou, dos livros que não escreveu... e dos filhos que não gerou.
E ganhe consciência de que a soma de todos os seus atos foi afinal o que o construiu como pessoa e lhe conferirá mais ou menos dignidade e honra, no dia e hora em que o entenderem evocar.
Ah... e caso não chegue a implicitamente perceber... o dinheiro nunca chegou a ocupar lugar nesta discussão.
Tenha-o na proporção suficiente para que nele não pense.
Encare-o como um meio de satisfazer a base da sua pirâmide das necessidades.
Não permita que ele ascenda, por si só, ao topo da pirâmide, pois esse será o dia do qual se arrependerá para o resto da sua vida.
Abdicará, para o gerar e gerir, dos sorrisos, das brincadeiras, do amor, das aventuras, das árvores, dos livros... e dos filhos.
No final, sozinho e inundado de notas, forrará o seu caixão, onde sem escolta será ocultado, sete palmos debaixo de terra, da vista de todos quantos em vida menosprezou.
Os melhores e maiores prazeres não custam um cêntimo... e condenados estaremos como espécie se um dia deixarmos que passem a custar.
Faça contas a quanto pagou pelo amor que os seus pais incondicionalmente toda a vida lhe entregaram, fazendo-o sentir o melhor e mais precioso ser de todos os seis mil milhões que povoavam, à data, este planeta, de quanto pagou pela lealdade à prova de tudo que os seus irmãos lhe dedicaram todos os minutos da sua vida, de quanto pagou para que o seu coração batesse descompassadamente da primeira vez que deu a mão à mulher que ama, de quanto pagou pelas borboletas que sentiu voarem descontroladamente no seu estômago, de cada vez que com ela se encontrou enquanto namoravam, de quanto pagou pelo beijo na noite em que lhe pediu que caminhassem juntos para o resto da vida, de quanto pagou pelo vislumbre dos primeiros passos e conquistas de seus filhos, de quanto pagou pelo sorriso nos seus olhos de cada vez que gritaram "o pai chegou", de quanto pagou por encontros e reencontros e conversas e tertúlias e passeios e mergulhos e corridas e dormidas e vento na sua cara e chuva no seu corpo e neve nos seus ossos e lambidelas nas suas mãos e latidos de satisfação e chilrear matinal e coaxar crepuscular e quanto pagou por todos os raios de sol que o aqueceram e o iluminaram por fora e por dentro, de quanto pagou por tudo isto e por tudo o mais que lhe encheu a alma de sólida confiança num futuro glorioso para a humanidade... e que lhe mostrou afinal que não há mundo como o nosso nem país como o nosso nem família como a nossa, nem identidade como a que só a nós nos pertence.
Parece-lhe complicado?
Pelo contrário... tudo, tudo na vida é extraordinariamente simples.
Torne-se simples... e naturalmente, de forma absoluta, Será!


Afonso Gaiolas

quarta-feira, fevereiro 20, 2013

Mais viver sem viver mais

Imagina a esperança média de vida atingir os noventa anos de idade?
Fá-lo-ia feliz?
Tudo quanto possa representar a protelação do fim da existência soará sempre à melhor das notícias.
O problema é que enunciar o número noventa também faz ecoar as palavras velhice, vulnerabilidade, debilidade e caducidade.
Devemos então apontar baterias à otimização do potencial energético do ser humano até final da sua existência?
Sem dúvida.
Mas o verdadeiro segredo de mais viver reside em algo mais simples de imaginar, incrivelmente complicado de concretizar, e que em nada tem, paradoxalmente, a ver com a longevidade.
Dormiu bem a noite passada?
Se a resposta tiver sido afirmativa, é provável que oito horas tenha sido o tempo dispendido nesta função orgânica. E oito horas equivalem a um terço das vinte e quatro que constituem uma rotação terrena. E um terço será também o tempo dispendido, ao longo da sua vida (porque todas as noites, queirando ou não, dormirá) em funções regenerativas inconscientes, inconsciente do mundo que o rodeia, desperdiçando tempo precioso, em todas as idades, incluindo as de ouro a nível energético e cerebral!
Em estado de vigília contínua, proporcionalmente, noventa anos equivaleriam à vivência de cento e vinte segundo os padrões atuais. E isto sim, seria um salto evolutivo sem comparação na história da humanidade, superior mesmo ao bípedismo ou à manipulação consciente do fogo e da roda.
Antes do devaneio da eliminação do sono como o conhecemos, é necessário perceber realmente para que serve esta muleta biológica.
A resposta é tão ambígua quanto a natureza da pergunta o pode ser.
Estou convicto que algumas das teorias prevalecentes nos podem encaminhar para uma solução que se aproxime dos propósitos originais da arquitetura biológica subjacente a este ato. No entanto, a falta de certezas científicas deixa-nos na frágil posição de especuladores intelectuais na busca de uma razão para algo que, aparentemente, parece uma falha da natureza.
Como decerto todos concordamos que a natureza, tendencialmente, raras vezes se engana e ainda menos vezes lhe restam quaisquer dúvidas, resta-nos alvitrar alguns propósitos e/ou funções que sejam realmente necessários executar durante o sono, tão importantes que se sobreponham à necessidade de permanente alerta quando se joga o perigoso jogo de predadores e presas.
A teoria da inatividade, que se mescla com a ideia de conservação de energia espelhada na hibernação invernal, pode ser válida mas claramente insuficiente.
A teoria regenerativa pode, é certo, impulsionar as duas anteriores para um patamar de quase imprescindibilidade, mas é sem dúvida a teoria da elasticidade cerebral que acolhe mais adeptos, quando se trata do período de sono dos seres humanos.
Milhares de anos de evolução levaram a que o peso dado a cada uma das funções agora descritas tenha naturalmente variado, sempre com o propósito de melhorar a espécie e proporcionar-lhe mais oportunidades de sucesso e sobrevivência.
Será chegada a hora de equacionarmos a supressão de tão importante função biológica?
Talvez... suspiro, pensando que deveria escrever o quanto atrasados ainda estamos na escala de Kardashev... consciente de que não nos restam mais do que alguns, poucos, milhares de milhões de anos para resolvermos o nosso problema existencial...
Regressando ao cérebro, que será sempre a chave de todas as soluções...
A teoria da inatividade reclama para si um ideal de proteção intrínseca que advém do facto da diminuição de exposição aos perigos noturnos a um ser não adaptado à perda abrupta de luminosidade. Os seres humanos há muito eliminaram esta necessidade, quer por se terem (a pulso) colocado no topo da pirâmide que representa a cadeia alimentar, quer por terem dominado a arte de controlar o espectro eletromagnético situado entre a radiação infravermelha e ultravioleta.
A teoria da conservação de energia também deixou de ser um fator limitativo, a partir do momento em que os seres humanos deixaram de depender de fontes naturais diretas para a aquisição dos produtos energéticos que compensem as suas perdas diárias. Em qualquer ambiente, do mais inóspito ao mais benevolente, quer o vestuário, quer a alimentação, ambos à distância de um armário ou de uma prateleira, trouxeram um conforto inexcedível à humanidade, pelo garante da saciação sem esforço destas necessidades básicas.
Restam-nos as as duas funções mais complexas.
A função regenerativa, explicada cientificamente, parece ser exponenciada no período de letargia noturno, altura em que o combate aos radicais livres produzidos durante o dia pelas células na conversão de nutrientes em energia atinge o seu auge. Parece-me que, no entanto, se adequadamente manipuladas, tanto as células que geram este subproduto, como as enzimas que o combatem, podem ver a sua eficácia multiplicada, tornando desnecessário o período de repouso contínuo a que todos os mamíferos parecem estar sujeitos, após uma jornada diária de sobrevivência e prosperação.
Quanto à teoria da elasticidade cerebral, que faz reclamar para o período noturno a responsabilidade de edificação e consolidação das sinapses entre neurónios, em conjunto responsáveis pela memorização e apreensão de conhecimentos, não restam dúvidas acerca da sua imprescindibilidade. O processo de transformação da memória volátil em impressões definitivas contribui decisivamente para que, diariamente, todos os seres humanos se tornem melhores e mais capazes, individual e coletivamene, no caminho atribulado, enquanto espécie priveligiada, para a geração de uma consciência global que contribua para contrariar o fatal destino que a instabilidade do vácuo (grande amigo, este pequenito bosão de Higgs...) nos parece querer traçar.
Como contornar então esta necessidade?
A resposta parece estar naquele ser marinho que, em inteligência, muito pouco fica a dever a muitos seres humanos.
Este mamífero (irracional... porque racional só o esbelto humanóide) que alguém um dia já chamou "bolfinho", conseguiu treinar o seu cérebro para que, alternadamente, diferentes áreas pudessem entrar em modo de consolidação inconsciente, enquanto outras permanecem em plena atividade. Esta brilhante adaptação permite-lhe uma permanente vigília e, simultaneamente, a realização das mesmas tarefas que seriam supostas acontecer no período de inconsciência cerebral típico do sono.
Sendo certo que, provavelmente, esta adaptação apenas se deveu à necessidade deste mamífero tornar consciente o ato de respirar (que nos mamíferos terrestres placidamente se mantém inconsciente), fornece-nos, no entanto, uma pista preciosa no caminho da resolução deste problema humano de inatividade.
Imagina-se agora a sonhar acordado?
O fascínio pelo futuro só o é enquanto mantivermos a capacidade de imaginar para além do óbvio, evoluir para além do expectável e quebrar dogmas que aparentavam ser, temporal e espacialmente, imutáveis.
De pequenos passos para um homem, em gigantescos saltos evolutivos para a Humanidade (honrando a maior gaffe verbal da História)... rumo ao sexto tipo da escala civilizacional de Galantai.

Todos os homens que não sabem o que hão-de fazer desta vida
desejam outra, que nunca acabe.
Anatole France

Um abraço,

Afonso Gaiolas

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Previna... para não ter que remediar

Este texto não pretende induzir qualquer pessoa a tomar decisões que contrariem a sua natureza interior, nem tão pouco ferir os postulados dos colégios de medicina das civilizações ocidentais.
Sinto-me forçado a esta introdução para evitar mal-entendidos e especulações acerca dos reais intentos deste ensaio.
As implicações das minhas convicções, estou absolutamente consciente deste facto, estendem-se para além das consequências pessoais que possam advir do meu processo de tomada de decisão. Os que de mim dependem, os que em mim confiam, acreditam que não menos que o melhor que sou e sei será incondicionalmente entregue, durante todo o seu complexo processo de crescimento, para que o melhor dos adultos suceda à melhor das crianças.
Qual deve ser o papel da medicina nas nossas vidas?
Porque razão deixámos que a perspetiva economicista da prevenção se sobrepusesse à melhor das soluções ao nosso dispor, que já agora, lhe custam apenas os minutos de introspeção que ao longo da vida utilizar, e que se resumem em escutar o nosso eu interior e tomar ações preventivas sensatas, que em nada necessitam estar coladas a um gabinete hospitalar ou de qualquer clínica de medicina privada.
Vamos começar pela dentição.
É verdade que os genes desempenham um papel importantíssimo neste assunto.
Que provavelmente os africanos terão sido mais bafejados pela sorte que os caucasianos no jogo da roleta do ADN.
Mas por que razão são as civilizações mais avançadas as mais necessitadas de cuidados médicos ortodônticos?
Porque decidimos ignorar o que a nossa razão interior nos quis transmitir.
Porque em cada crânio humano passou a estar uma potencial fonte de rendimento, em consultas preventivas e tratamentos paliativos da auto-destruição a que nos vamos lentamente dedicando ao longo da vida.
Pode uma alimentação adequada e cuidados básicos de higiene diários serem suficientes para que os dentes se mantenham incólumes ao longo da vida útil em que deles é suposto necessitarmos?
Não só podem como, estou convicto, evita o contínuo fragilizar da dentição que resulta das "limpezas", branqueamentos e outros tratamentos tão em voga nos dias que correm, de cada vez que visita o seu dentista de eleição, brasileiro ou luso, que só o sotaque os distinguirá.
São os dentistas necessários ou supérfluos?
Absolutamente essenciais, em caso de tratamentos hospitalares, curiosamente nos locais onde não existem, ou são espécie em vias de extinção, no tão mal amado Serviço Nacional de Saúde.
Onde se insere neste cenário a visita semestral (que passará a trimestral quando se aperceberem que duplicarão os lucros com esta medida) ao dentista, recomendada pela ordem dos médicos desta especialidade?
Bem, se o seu objetivo de vida é alimentar esta rede privada de cuidados de saúde que lhe mastigarão a carteira até que o seu subsistema de saúde / seguro / ou o nosso ministério da saúde colapsem, faça favor de se colocar na fila de carneiros que apenas nos dias ímpares dos meses pares dos anos bissextos pensam pela sua cabeça.
Perceberá, no final da vida, com uma prótese integral, ou dentes implantados que lhe custaram vários anos de salário, que a seu lado convivem pessoas com a dentição original completa, sem mais dispêndio de tempo nem de dinheiro para que tal sucedesse, que não o da mais elementar saúde oral caseira!
Falo com a propriedade de quem, quase ao romper da ternura dos quarenta, há mais de vinte anos não efetua qualquer tratamento ou visita de caráter paliativo a um consultório médico desta especialidade, e permanece com a sua dentição original (três dezenas e duas unidades)... intocada.
A medicina é talvez a conquista mais importante dos seres humanos nos dois últimos séculos.
(Também) graças a ela, duplicámos a nossa esperança média de vida à nascença.
Multiplicámos em muito mais que isso a nossa qualidade de vida, especialmente nos períodos de maior debilidade enquanto seres vivos.
Não posso concordar, no entanto, que seja usada a arma da insegurança que deriva da ignorância médica, para que a população seja inserida numa rede de dependência médica que, não raras vezes à custa dos efeitos secundários que geram um ciclo vicioso de necessidades continuadas, se vê espoliada da sua saúde física, financeira e mental para o resto das suas vidas.
Deixemos aos médicos a função para a qual estão destinados (Médico - o que cura um mal-estar físico ou moral), remuneremo-los na proporção da educação esforçada que dedicaram à causa médica (nunca em função do receio que possam incutir com a ameaça latente de diminuição da qualidade ou protelação dos atos médicos... que toda a gente mais tarde ou mais cedo necessitará...), mas não cedamos à voracidade capitalista dos que esqueceram ou nunca souberam o que representa o juramento que originalmente Hipócrates imortalizou.

Afonso Gaiolas

sexta-feira, janeiro 11, 2013

Quem quer ser milionário?

Já deu por si a praguejar que pouca sorte ter escolhido a fila mais lenta do supermercado?
Ou a faixa mais lenta de uma via rápida lotada de tráfego automóvel?
Ou será que  inconscientemente valoriza mais os aspetos negativos de uma situação que lhe é desconfortável ou desfavorável à partida, menosprezando as conquistas ou aspetos positivos da mesma situação?
A psique humana é terrivelmente tendenciosa, e não raras vezes nos tolda a razão, levando-nos a ações das quais a própria razão se envergonharia.
Repudia certamente todos os casos de vício compulsivo em jogos de sorte e azar, em casos não raras vezes causadores de destruição pessoal e familiar, numa espiral destruidora que rivaliza com o mais impetuoso dos furacões.
Repudia... mas joga no euromilhões todas as semanas.
Repudia... mas lá raspa religiosamente o papelinho sempre que vai ao quiosque, disfarçada ou propositadamente para esse único fim.
Inócuo!
Que comparação ridícula!
Sem pés nem cabeça!
Pois...
O imposto dos pobres, digo eu a quem me quiser ouvir!
Desemprego a galopar para a segunda dezena percentual, impostos a aproveitar a boleia do galope, evolução dos salários em galope inverso... mas mil setecentos e vinte e sete milhões de euros gastos, apenas nos jogos sob a alçada da Santa casa da Misericórdia de Lisboa, nos mesmos 365 dias em que estes cavalos de corrida todos estiveram à solta.
Leu corretamente, mil setecentos e vinte sete milhões de euros.
Quer agora incluir o jogo tradicional de casino, ou as apostas futebolísticas e jogos de cartas on-line?
Decidi que não, que o número isolado dos chamados jogos sociais é suficientemente brutal.
Até porque o perfil do jogador de casino ou de cartas on-line é outro, mais sombrio e distante da adjetivação de pobre (conquanto o polvo o não tenha ainda envolvido nos seus tentáculos).
São, portanto, mil setecentos e vinte e sete milhões de euros excedentários no orçamento das famílias, as mesmas que argumentam não ter dinheiro para dar de comer aos filhos.
Mas dois euros por semana nada significam, argumentam os viciados de pequeno calibre, que iguais são na proporção do vício, se comparados com os grandes apostadores com rendimentos anuais grandes na proporção do grande gasto.
Significam pois muito.
Doze euros mensais (um euromilhões e uma raspadinha jogados por semana) representam dois e meio por cento do total da remuneração de um trabalhador que aufira o salário mínimo nacional.
O anúncio de um corte de dois e meio por cento nos salários dos trabalhadores representa duas avenidas e meia da liberdade de protestantes a vociferarem contra os sete mares, os sete ventos e os sete ministros que estiverem mais à mão.
Doze euros representam quase seis quilos de carne comprada em promoção no seu supermercado de referência.
Representam quase vinte quilos de arroz ou de massa na despensa de sua casa.
Na despensa da mesma casa onde os filhos vão para a escola com o pequeno almoço por tomar...
Pare para pensar.
Andou na escola... muito... pouco tempo... passeou os livros... ou deixou que os livros o passeassem...
Eu ajudo-o...
Não se assuste com a fórmula, só nos vai interessar mesmo o número final.

P(A) = 50!/5!/(50-5)! = 2,118,760
Calculada a probabilidade de acertar 5 números em 50 possíveis.

P(B) = 11!/2!/(11-2)! = 55
Calculada a probabilidade de acertar 2 estrelas em 11 possíveis

P(A) * P(B) = 2,118,760 * 55 = 116,531,800
Eis a probabilidade de acertar no Euromilhões!

É mesmo... 1 hipótese em 116531800.
Ainda assim, a voz interna que comanda o jogador diz... mas esse um posso ser eu.
Pois é, mas então não saia de casa... pois uma em cada setecentas mil são as hipóteses de ser atingido por um raio.
Já se recorda agora do início deste artigo?
Vou repetir, para lhe evitar o enfado de percorrer de novo os parágrafos em busca da resposta.
"Ou será que inconscientemente valoriza mais os aspetos negativos de uma situação que lhe é desconfortável ou desfavorável à partida, menosprezando as conquistas ou aspetos positivos da mesma situação?"
Esta é a frase que o compele a sair de casa... pois não hei-de ser eu um dos 700000 a acrescentar carbonizado ao rol de alcunhas que foi adquirindo ao longo da vida.
Mas o mais importante é que o inverso desta frase o compele a continuar a desbaratar os seus escassos recursos financeiros no jogo, pois uma vez que a situação lhe é muito confortável e favorável (o sonho de imaginar o que faria com tantos milhões de euros, ou o prazer das palavras de irónica despedida que diria ao seu patrão no ato da desdenhosa renúncia à escravidão operária), o fará valorizar muito mais as conquistas e os aspetos positivos do que as perdas consecutivas e acumuladas que nunca reconhecerá ou menosprezará.
Resta-me pois desmontar o último dos argumentos dos jogadores...
Que o sonho e a imaginação da vida milionária ajudam a passar os dias de miséria física e moral, num mundo que não se lembra nem tão pouco se importa com a exploração dos mais pobres?
A estes... apenas uma pergunta...
Aceitaria tomar o comprimido azul, ao invés do vermelho?


 

Menino: Não tente dobrar a colher. Não vai ser possível.
Em vez disso, tente apenas perceber a verdade.
Neo: Que verdade?
Menino: Que a colher não existe.
Neo: A colher não existe?
Menino: Então verá que não é a colher que se dobra, apenas você.

THE MATRIX


Afonso Gaiolas

sábado, dezembro 29, 2012

Sui Caedere

Só as palavras, ainda que em latim, causam calafrios.
Se a si não lhe causa... está mais morto que vivo e ainda se não deu conta. E qualificá-lo como morto era efetivamente uma metáfora.
Este tema requer uma sensibilidade tal na aproximação, qualquer que lhe seja feita, que hesitei por quase um mês a expressão escrita da minha perspetiva do assunto.
Suicidam-se os fracos?
Suicidam-se os fortes?
Quem se suicida continua mais vivo que os mortos que não o fazem?
Durante muito tempo mantive na minha caixa de frases de outros que me parecem simplisticamente belas, uma a este respeito que resumidamente qualificava o suicida como o mais corajoso de todos os cobardes.
Ainda penso nela... concordo com o seu espírito na íntegra, mas existem alguns desvios à padronização que é inevitável explicar... para não correr o risco de, a quem não tenha ainda passado por todo o processo de racionalização deste assunto, lhe pareça simplista sem apreender toda a sua plenitude.
Todos precisamos de ser complicados para nos conseguirmos tornar simples. E quanto mais simples, menos imperfeitos. E quanto menos imperfeitos, mais próximos de perceber a complicação do Mundo... que no final nos vai parecer tão simples.
Cresci, no meu Alentejo, com a convivência natural e próxima do suicídio na terceira idade.
Esta região, se considerada isoladamente, posiciona-se nos lugares cimeiros de todo o planeta na infeliz lista de suicídios por cada 100.000 habitantes.
Este primeiro tipo de suicídio, que qualificarei de suicídio por inutilidade, toma nesta região mais visibilidade, dada a combinação única dos fatores de baixa religiosidade (que naturalmente inibe um ato pecaminoso desta natureza) com o envelhecimento extremo e a desertificação humana galopante. Ora, numa estatística onde se tratam valores relativos, é fácil concluir que a média estará desvirtuada. Não existe pois qualquer problema psicótico na juventude alentejana, que está bem viva e se recomenda. Existe sim um problema geracional e cultural de sensação de inutilidade após o término da vida ativa e que, aliado ao exemplo recebido dos anciãos ancestrais, fez com que a combinação dos dígitos 605 com a palavra forte fizesse parte do glossário de conhecimentos de toda a juventude da planície, que cresceu e se tornou gente nas últimas décadas do século passado. 
Muito diferentes são as estatísticas de suicídio da Europa do Norte.
Aqui, o problema torna-se mais complexo, pois são os novos (na faixa etária dos 15 aos 54 anos) e não os idosos que proporcionalmente mais se suicidam.
Numa sociedade evoluída, com tanto acesso ao conhecimento e, especialmente, numa região do globo com um dos mais elevados índices de desenvolvimento humano, seria expectável que os jovens se sentissem mais apoiados e confiantes face ao futuro.
Acontece que o desenvolvimento humano não é sinónimo de felicidade humana.
Neste período natalício tive uma discussão acesa sobre este mesmo assunto... essencialmente onde tentei transmitir esta ideia errada da visão da galinha da nossa vizinha que... não tenhamos ilusões... não é mesmo maior, nem tão pouco melhor do que a minha.
Ansiamos copiar todos os modelos da Europa desenvolvida, esquecendo-nos dos efeitos secundários que eles também acarretam.
Aspiramos emigrar para todos estes países, apenas para perceber, passadas algumas frias e escuras badaladas de inverno, que não há papel-moeda que possa comprar os raios de sol que aquecem este retângulo, as temperaturas amenas, a brisa temperada de um mar que não gela, o pôr-do-sol cor da laranja mais doce da laranjeira dos nossos pais, e a ausência de pressa de quem dá ao dinheiro o valor que ele realmente tem... ansiando apenas ter o suficiente para que com ele não tenha o seu espírito que se ocupar.
Troco todo o petróleo e todo o bacalhau noruegueses por uma vida em Portugal.
Oferecê-la-ia a todos quantos desconhecem existir uma vida para além da pressão social, capitalista ou não, de seis meses de escuridão ou de semanas intermináveis de nevão atrás de nevão.
E esta singela oferta, impossível porquanto se não pode oferecer o que não nos pertence por direito, seria suficiente para inverter a tendência para o abismo que toda aquela geração nórdica aprende gradualmente a cultivar.
[...]
Passemos agora para o patamar da alienação...
As repúblicas advindas da rutura da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas situam-se no topo da lista dos suicídios por país, em valores relativos.
Nestes casos, parece-me ser absolutamente preponderante o alcoolismo (que também prolifera na Europa do Norte), pois alia uma sintomatologia depressiva à desinibição e anulação dos efeitos repressores naturais ao ato de anulação da própria vida.
A prova deste fenómeno está na proporção invulgarmente alta de homens que se suicidam, estando o valor feminino, nalguns casos, bem abaixo da média de todos os países do mundo.
[...]
Por último... a mais perigosa de todas as incursões...
Até agora, tudo foi fácil.
Inutilidade, alienação, pressão social, perda de dignidade (o infeliz caso nacional japonês e coreano, potenciado pela ausência de censura social), tudo são razões óbvias, facilmente explicáveis e aceites para que este flagelo humano se continue a suceder.
Passemos a um patamar "Shakespeariano"...
Albert Camus advogava que o único problema filosófico realmente sério era justamente o suicídio. Que o julgamento de que se a vida valia ou não a pena ser vivida responderia à questão mais fundamental da filosofia.
Concordo em absoluto.
Mas a minha aproximação à vida é a mesma que tenho perante a religião, o que facilita a resposta, ao invés de deixar a questão etereamente a pairar sobre as nossas cabeças.
É fácil ser bom quando sabemos ter um ser omnipresente que nos julgará por todos os atos praticados.
Difícil é continuar a escolher ser bom, mesmo nas ocasiões em que acreditamos saber que ninguém nos julgará pelos nossos atos.
Fácil é escolher viver, porque a religião ou a sociedade ou o instinto nos compele a tal, porque acreditamos que fazemos parte de um plano de alguém maior do que nós, que não precisamos conhecer ou vislumbrar, por reconhecida incompetência intelectual, mas no qual cegamente acreditamos, pois não menos somos do que "o povo eleito".
Difícil é continuar a escolher viver, mesmo duvidando, não da existência do plano, mas da nossa inclusão como atores principais (ou sequer figurantes terciários) para além das finitas expirações que cada um terá neste berlinde que rodopia ritmado ao sabor da gravidade.
Agarro-me à esperança de que, se não eu, os meus filhos, os filhos de meus filhos, ou os filhos dos filhos de meus filhos... possam um dia reescrever o plano e mostrar um sentido a toda a humanidade, mostrando-lhe o seu lugar... não por baixo mas ao lado do Criador, tal como um filho que digno cresce e faz por merecer um dia poder estar sentado à direita de seu pai!


Morrer?
Não tenho medo... tenho pena!


Afonso Gaiolas



quarta-feira, dezembro 05, 2012

O feitiço da Lua

Lentos são os dias.
Tão lentos que parece que voam.
A lentidão passou a ser parte integrante do seu ADN. Contudo, nunca o tempo pareceu escorrer tão veloz por entre dedos incapazes há muito de o suster, de o aprisionar e preservar como se do bem mais precioso do mundo se tratasse...
É este o paradoxo de ser velho!
Ser velho é ser lento, é encarnar Paul Rayment, soberbamente imaginado por Coetzee, mas com a agravante de o adjetivo se manter válido, mesmo sem qualquer diminuição física do protagonista.
Ser lento não é sinónimo de ser burro.
Ser lento não pode ser sinónimo de ser descartável.
Trapos somos todos. Uns engomados depois de lavados, outros descolorados pela passagem do tempo, outros ainda parcialmente rasgados pelas agruras às quais a sorte nos sujeitou.
Todos oriundos da mesma gaveta... todos com o destino final traçado na própria data de fabrico.
Se a ilusão da imortalidade da irreverente juventude pode atenuar o facto de ignorarmos (e desdenharmos??) de todos quantos não tenham, aparentemente, bebido o tão famoso quanto improvável elixir e pareça diminuído aos nossos olhos, a maturidade que a carruagem intermédia do tempo nos devia trazer, deveria ser suficiente para que as abjeções a que infelizmente assistimos cada vez com mais frequência fossem de vez eliminadas da nossa sociedade.
Gostamos de a apelidar de sociedade de valores...
Gostamos de apregoar a cada vez maior preocupação com as nossas crianças, com a sua educação e o seu futuro.
Gostamos de apregoar que somos um povo que preserva a sua memória coletiva, os memoráveis feitos e a fibra dos seus antepassados.
A verdade...
A verdade que dói e corrói é que não gostamos dos nossos velhos.
Não gostamos do transtorno que causam às nossas vidas cada vez mais individuais, individualistas e solitárias.
Não gostamos do empecilho  e entrave ao controlo pleno das nossas possessões e decisões, das nossas casas e recantos e das nossas conversas e silêncios.
Não gostamos de incontinência, de cheiros, de maleitas, de tropeções e apoio em corrimões.
Não gostaremos por certo de o ouvir, mas não passamos de uma cambada de parvos armados em intelectuais!
Aquele tipo de parvos que, quando se lhes aponta a lua... olham para o dedo.
Aquele tipo de parvos que se vê livre de quem tudo deu por si enquanto se tornava um adulto independente e os deposita agora, como retorno, num lar muito asseadinho... longe da sua vista, para eventualmente depois, que a crise toca a todos, os resgatar mais tarde para sua casa... não por amor aos progenitores mas ao rendimento mensal extra que isso lhe pode trazer.
Falamos muito de negligência parental, da punição judicial e social de pais que maltratem, menosprezem ou abandonem os seus filhos.
Recusamo-nos a falar de negligência para com os nossos ascendentes.
Recusamo-nos a assumir que é da mais elementar justiça moral que, quem deu o melhor de si durante os melhores anos da sua vida, renunciando à luxúria da conceptualização narcisista do EU em detrimento de todos os outros em seu redor, merecerá mais consideração que o tratamento assético dado por estranhos, numa casa estranha, tantas vezes numa terra estranha ou, como se a perda de mobilidade e energia o fizessem regressar a um estágio de pré-desenvolvimento, o tratamento infantilizado dado por aqueles que, afinal, de criancinhas mimadas disfarçadas de engravatados ridículos não passam.
Quantos acreditam que a colocação num colégio interno trará mais amor e melhor educação para a cidadania aos seus filhos?
Pois... a maioria considera que o amor dos pais é insubstituível, e que nenhuma outra hipótese que não o crescimento saudável em ambiente familiar deve ser considerado, independentemente do esforço e sacrifício familiar que tenha que ser feito para orquestrar toda a vida em redor da(s) novas vidas que despontam.
Estas mesmas pessoas consideram, no entanto, que a melhor solução para o problema de velhice de seus pais é o seu internamento num lar de terceira idade, oferecendo como retribuição de todo o amor em si depositado ao longo de toda a sua vida, uma visita quinzenal ou mensal que diminua o peso de uma consciência que o teria... se chegasse a existir!
Sou contra os lares?
Não, não sou.
Tal como não sou contra a existência de orfanatos.
Sou contra o abandono de velhos em hospitais enquanto duram as férias em Grandvalira, contra o esquecimento a que são votados em lares ou outras habitações de ocasião, contra o tratamento infantilizado de quem sabe mais na ponta de cada cabelo branco que três mestrados integrados de Bolonha, contra o desdém com que se ouvem as suas opiniões e conselhos, apenas porque a voz deixou de ser delirantemente cristalina.
Sou absolutamente a favor de uma censura social tão naturalmente forte que por si só seja suficiente para auto-regular uma sociedade que está a deixar de perceber o valor das coisas que não se podem trocar em sites de compra e venda de artigos supérfluos.

Por favor... pare de uma vez por todas de fixar o dedo e contemple quão bela se lhe afigura a Lua.

Afonso Gaiolas
 

sábado, novembro 03, 2012

Do amor e outras histórias

O assunto dos assuntos.
O motor de todo o desenvolvimento, a razão de todas angústias, sorrisos e lágrimas derramadas ao longo da História da humanidade.
Em todas as suas formas, formatos e corações, a natureza encarregou-se de codificar de forma tão indelével este sentimento que, ainda que o não reconheçamos em animais e plantas, ele se encontra em todas as formas vivas do nosso planeta.
Consegue convictamente negar que não é o amor que leva o macho da viúva negra a abdicar da sua existência para assegurar a continuidade da sua espécie?
Talvez pense que os animais apenas têm instintos e que, mesmo o mais maravilhoso sentimento de proteção materna animal apenas faz sentido num contexto de preservação de espécie e não na relação de amor mãe-filho.
Gostamos de nos colocar num patamar civilizacional tão elevado que não raras vezes nos esquecemos das nossas humildes origens... e que não há muitos milénios atrás ainda nem do clube dos bípedes fazíamos parte.
Será que o instinto e o amor estarão assim tão dissociados?
Ou será o segundo um prolongamento do primeiro, refinado por séculos de evolução intelectual, paralela à evolução animal?
Não possuo a resposta correta. Nem eu nem o melhor dos psicólogos.
Todos olhamos para o amor exclusivamente com os nossos olhos, cuja visão (ainda) mais ninguém partilha e com eles forjamos este conceito tão pessoal como, paradoxalmente, simultaneamente transmissível e intransmissível.
Transmissível na multiplicação dos efeitos da sua partilha, intransmissível porque a sua perda resulta invariavelmente na extinção do sujeito vivo.
Esta dissertação não tem, por isso, qualquer veleidade em abrir um portal de racionalidade num assunto tantas vezes conotado com a irracionalidade mais primária que o ser humano pode suportar.
Há algumas luas atrás escrevi um artigo intitulado "Aos que olhando, se recusam a sentir".
Gostava de por aí começar, por acreditar que a espiral de divórcios nacional poderia facilmente ser estancada se as pessoas fossem capazes de sentir os outros como um todo e identificarem similaridades (que não apenas a compatibilidade sexual) que lhes permitisse ter um grau de certeza que se coadunasse com o compromisso permanente, na altura da escolha do seu parceiro.
A generalidade das sociedades evoluídas há muito abandonaram a ignóbil prática de tentar forçar o que é impossível ser imposto. Uniões por conveniência social, monetárias ou de cariz diplomático foram a principal fonte de sofrimento e angústia durante séculos, mas não fazem sentido numa sociedade que se pretende igualitária e preservadora da liberdade individual.
Porque é que as pessoas continuam então a errar?
Por falta de amostragem, por comodismo e por ignorarem os seus sentidos.
Por se alhearem do essencial, valorizando apenas o acessório.
Por não perceberem que essa será a grande missão das suas vidas!
E, se no passado, ainda que libertos de amarras, a amostragem (falta dela) fosse o principal obstáculo à descoberta da fonte de felicidade eterna, o presente (mas especialmente o futuro) trar-nos-á ferramentas de socialização que permitirão a seleção parcelar de compatibilidades, evitando as perdas por desconhecimento.
Muitos dos que hoje argumentam contra relacionamentos virtuais, que quase não têm equivalência física no mundo real, esquecem ser provavelmente fruto de relações, também elas inicialmente na sua maioria virtuais, num tempo de troca de juras de amor na volta do correio, sem correspondência física que não a essência do perfume dos subscritos ou da tinta usada nas missivas.
As vantagens dos dias de hoje superam largamente todas as desvantagens que se lhe possam apontar, conquanto se entendam as limitações que a ausência de contacto direto proporciona.
Já todos se aperceberam da perfeição humana apregoada na principal rede social mundial. Se assim fosse, se todos tão perfeitos fossemos, seria de esperar que o mundo se tivesse tornado num local muito melhor do que realmente é.
O problema está na ausência de limites à auto-promoção individual.
Enquanto que, numa conversa, social ou amorosa, é necessário um equilíbrio entre interlocutores, de modo a que um eventual distúrbio narcisista não desmorone toda a conversa ou mesmo o relacionamento, no mundo virtual podemos facilmente manter um monólogo audiovisual sem interrupções, que não as de quem comenta (mas não interfere), pois detemos o poder de controlar as respostas de todos os intervenientes.
É fácil pois criar uma aura de perfeição, facilmente anulada em contacto direto por quem tenha os sentidos bem despertos, mas virtualmente impossível de desmontar neste admirável mundo novo.
E quanto à velocidade dos acontecimentos?
Choca, às mentes desgastadas pelo dobrar de fios de areia em prisões de vidro, que as relações de hoje se concretizem e se desenvolvam a uma velocidade até há umas décadas atrás impensável.
Acontece que a intensidade e o volume de horas passadas com o parceiro, quer em companhia física, quer em companhia virtual, por cada unidade temporal, qualquer que seja a que queiramos utilizar, é muito superior (ou potencialmente superior). E isso leva a que a distância entre cada passo dado na relação se torne cada vez menor.
A única grande desvantagem é a ausência de tempo de amadurecimento e de racionalização dos acontecimentos, que evite passos em falso ou dados na direção errada.
Passos que, nalguns dos casos, se conectam com atos irreversíveis e com consequências em terceiros que deveriam ser os primeiros!!
Devem pois as novas gerações ouvir os conselhos dos que os que os precederam têm para lhes dar, de modo a evitar aprender apenas com os erros próprios?
Egoisticamente, apenas se quiserem.
Como já disse há pouco, este é um caminho pessoal e, simultaneamente transmissível e intransmissível que cada um trilhará como bem entender.
Podemos não gostar, podemos mesmo questionar, a verdade é que a (r)evolução no modo como as pessoas se relacionam é um facto civilizacional consumado.
Não tem já idade nem sexo, nem tempo nem lugar.
Após milhões de páginas ocupadas com este assunto, séculos de poemas e versos declamados numa ode a tão terno sentimento, sinto que todo o esforço de tradução do intraduzível, no entanto, se resume à seguinte frase:
Quando os humanos perceberem finalmente que a beleza do amor está na naturalidade de quem encontra sem nada procurar, então tenderá para zero a angústia de quem perde uma vida à procura sem nunca encontrar.


"Se o amor cabe numa só flor, então é infinito."
                                                                                                                                        Antonio Porchia


Afonso Gaiolas