sábado, dezembro 29, 2012

Sui Caedere

Só as palavras, ainda que em latim, causam calafrios.
Se a si não lhe causa... está mais morto que vivo e ainda se não deu conta. E qualificá-lo como morto era efetivamente uma metáfora.
Este tema requer uma sensibilidade tal na aproximação, qualquer que lhe seja feita, que hesitei por quase um mês a expressão escrita da minha perspetiva do assunto.
Suicidam-se os fracos?
Suicidam-se os fortes?
Quem se suicida continua mais vivo que os mortos que não o fazem?
Durante muito tempo mantive na minha caixa de frases de outros que me parecem simplisticamente belas, uma a este respeito que resumidamente qualificava o suicida como o mais corajoso de todos os cobardes.
Ainda penso nela... concordo com o seu espírito na íntegra, mas existem alguns desvios à padronização que é inevitável explicar... para não correr o risco de, a quem não tenha ainda passado por todo o processo de racionalização deste assunto, lhe pareça simplista sem apreender toda a sua plenitude.
Todos precisamos de ser complicados para nos conseguirmos tornar simples. E quanto mais simples, menos imperfeitos. E quanto menos imperfeitos, mais próximos de perceber a complicação do Mundo... que no final nos vai parecer tão simples.
Cresci, no meu Alentejo, com a convivência natural e próxima do suicídio na terceira idade.
Esta região, se considerada isoladamente, posiciona-se nos lugares cimeiros de todo o planeta na infeliz lista de suicídios por cada 100.000 habitantes.
Este primeiro tipo de suicídio, que qualificarei de suicídio por inutilidade, toma nesta região mais visibilidade, dada a combinação única dos fatores de baixa religiosidade (que naturalmente inibe um ato pecaminoso desta natureza) com o envelhecimento extremo e a desertificação humana galopante. Ora, numa estatística onde se tratam valores relativos, é fácil concluir que a média estará desvirtuada. Não existe pois qualquer problema psicótico na juventude alentejana, que está bem viva e se recomenda. Existe sim um problema geracional e cultural de sensação de inutilidade após o término da vida ativa e que, aliado ao exemplo recebido dos anciãos ancestrais, fez com que a combinação dos dígitos 605 com a palavra forte fizesse parte do glossário de conhecimentos de toda a juventude da planície, que cresceu e se tornou gente nas últimas décadas do século passado. 
Muito diferentes são as estatísticas de suicídio da Europa do Norte.
Aqui, o problema torna-se mais complexo, pois são os novos (na faixa etária dos 15 aos 54 anos) e não os idosos que proporcionalmente mais se suicidam.
Numa sociedade evoluída, com tanto acesso ao conhecimento e, especialmente, numa região do globo com um dos mais elevados índices de desenvolvimento humano, seria expectável que os jovens se sentissem mais apoiados e confiantes face ao futuro.
Acontece que o desenvolvimento humano não é sinónimo de felicidade humana.
Neste período natalício tive uma discussão acesa sobre este mesmo assunto... essencialmente onde tentei transmitir esta ideia errada da visão da galinha da nossa vizinha que... não tenhamos ilusões... não é mesmo maior, nem tão pouco melhor do que a minha.
Ansiamos copiar todos os modelos da Europa desenvolvida, esquecendo-nos dos efeitos secundários que eles também acarretam.
Aspiramos emigrar para todos estes países, apenas para perceber, passadas algumas frias e escuras badaladas de inverno, que não há papel-moeda que possa comprar os raios de sol que aquecem este retângulo, as temperaturas amenas, a brisa temperada de um mar que não gela, o pôr-do-sol cor da laranja mais doce da laranjeira dos nossos pais, e a ausência de pressa de quem dá ao dinheiro o valor que ele realmente tem... ansiando apenas ter o suficiente para que com ele não tenha o seu espírito que se ocupar.
Troco todo o petróleo e todo o bacalhau noruegueses por uma vida em Portugal.
Oferecê-la-ia a todos quantos desconhecem existir uma vida para além da pressão social, capitalista ou não, de seis meses de escuridão ou de semanas intermináveis de nevão atrás de nevão.
E esta singela oferta, impossível porquanto se não pode oferecer o que não nos pertence por direito, seria suficiente para inverter a tendência para o abismo que toda aquela geração nórdica aprende gradualmente a cultivar.
[...]
Passemos agora para o patamar da alienação...
As repúblicas advindas da rutura da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas situam-se no topo da lista dos suicídios por país, em valores relativos.
Nestes casos, parece-me ser absolutamente preponderante o alcoolismo (que também prolifera na Europa do Norte), pois alia uma sintomatologia depressiva à desinibição e anulação dos efeitos repressores naturais ao ato de anulação da própria vida.
A prova deste fenómeno está na proporção invulgarmente alta de homens que se suicidam, estando o valor feminino, nalguns casos, bem abaixo da média de todos os países do mundo.
[...]
Por último... a mais perigosa de todas as incursões...
Até agora, tudo foi fácil.
Inutilidade, alienação, pressão social, perda de dignidade (o infeliz caso nacional japonês e coreano, potenciado pela ausência de censura social), tudo são razões óbvias, facilmente explicáveis e aceites para que este flagelo humano se continue a suceder.
Passemos a um patamar "Shakespeariano"...
Albert Camus advogava que o único problema filosófico realmente sério era justamente o suicídio. Que o julgamento de que se a vida valia ou não a pena ser vivida responderia à questão mais fundamental da filosofia.
Concordo em absoluto.
Mas a minha aproximação à vida é a mesma que tenho perante a religião, o que facilita a resposta, ao invés de deixar a questão etereamente a pairar sobre as nossas cabeças.
É fácil ser bom quando sabemos ter um ser omnipresente que nos julgará por todos os atos praticados.
Difícil é continuar a escolher ser bom, mesmo nas ocasiões em que acreditamos saber que ninguém nos julgará pelos nossos atos.
Fácil é escolher viver, porque a religião ou a sociedade ou o instinto nos compele a tal, porque acreditamos que fazemos parte de um plano de alguém maior do que nós, que não precisamos conhecer ou vislumbrar, por reconhecida incompetência intelectual, mas no qual cegamente acreditamos, pois não menos somos do que "o povo eleito".
Difícil é continuar a escolher viver, mesmo duvidando, não da existência do plano, mas da nossa inclusão como atores principais (ou sequer figurantes terciários) para além das finitas expirações que cada um terá neste berlinde que rodopia ritmado ao sabor da gravidade.
Agarro-me à esperança de que, se não eu, os meus filhos, os filhos de meus filhos, ou os filhos dos filhos de meus filhos... possam um dia reescrever o plano e mostrar um sentido a toda a humanidade, mostrando-lhe o seu lugar... não por baixo mas ao lado do Criador, tal como um filho que digno cresce e faz por merecer um dia poder estar sentado à direita de seu pai!


Morrer?
Não tenho medo... tenho pena!


Afonso Gaiolas



3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Sr. Tenente Coronel. Antes de mais, muito obrigado por ter partilhado comigo os seus textos. Conforme lhe disse, achei de facto curioso um militar dos dias de hoje, no auge da sua carreira operacional, ter tempo e motivação para se dedicar a reflexões de índole filosófica, sociológica, psicológica ou de outro tipo que não as habituais preocupações de quem seguiu a carreira das armas.
Quando me disse que o propósito subjacente à redacção das suas reflexões foi deixar um legado escrito aos seus descendentes sobre as suas concepções do mundo, da sociedade e do homem, imediatamente me lembrei de uma obra de um amigo meu, já falecido, escrita há uns anos largos, com o mesmo objectivo. Trata-se do “Sermão ao meu sucessor – notas para uma ética da sobrevivência ”, do Fernando Mascarenhas, cuja leitura recomendo. Este testemunho, dirigido ao representante de uma geração vindoura, herdeiro de uma tradição muito específica na tão ampla diversidade de estilos e experiências da nossa sociedade, reflecte bem a preocupação de alguém que já viveu muito, em intensidade e variedade, em transmitir uma proposta de conduta e uma reflexão sobre o sentido da vida a quem nela dá os seus primeiros passos. É a particularidade e profundidade desta vivência que, ao moldar um perfil existencial amplo e universal, projectam de forma espontânea o seu autor nessa grande experiência que é a pedagogia.
A pedagogia é, na verdade, uma das vocações mais generosas e úteis à vida do indivíduo, da sociedade e da História. Numa comunidade onde o conhecimento e a sabedoria não fluem de forma organizada, prioritária e eficiente, não se gera verdadeira Humanidade, base incontornável da verdadeira civilização. Os anglo-saxónicos utilizam uma expressão muito curiosa e elucidativa sobre a perspectiva que têm do processo de ensino/aprendizagem. Referem-se à educação como “brought up” (“trazer para cima”, em tradução directa). Ensinar, educar, transmitir, é, de facto, elevar, fazer transitar o alvo do investimento educativo, de um patamar menor para um superior.
Apesar da tónica reflexiva e subjectiva que perpassa neste texto em concreto (o Sui caedere), uma leitura mais ponderada, e tendo em conta a informação que me transmitiu quanto às intenções mais primeiras e derradeiras subjacentes ao seu blog (e posterior livro), revela na verdade, segundo creio, uma forte inclinação pedagógica. É um texto em que fala o homem, o cidadão, o oficial e o pai, num todo equilibrado do qual sobressai uma alma especulativa e meditabunda, todavia firme e decidida quanto à origem, sentido e fim da sua reflexão.
Parece-me este texto, portanto, ser um acto de amor, decidido e solícito em prestar um contributo para os que lhe são mais queridos. Por isso sobressai também o tom optimista de apologética da vida (“Morrer? Não tenho medo… tenho pena!”). De facto, a nossa ética é a vida e a defesa deste fenómeno insondável que nos anima e rodeia, que nos foi gratuitamente atribuído e do qual podemos retirar tanta gratificação, quando vivemos segundo o bem. (continua)

Anónimo disse...

Ainda assim, o suicídio poderá ser visto como um fenómeno nem sempre incompatível com a própria vida. Como acto isolado, é contrário à normalidade biológica, sendo frequentemente associado a doença mental. Resulta na maior parte dos casos de um contexto depressivo, em que o humor está afundado num pântano de pessimismo, desespero, angústia, desalento… Estes sintomas podem ser tão profundamente acentuados, que pôr fim à própria existência afigura-se como sendo o melhor caminho a seguir. Claramente que o que o indivíduo procura neste contexto não é o fim da sua vida, mas o trânsito de uma existência em que se encontra, infeliz e desolada, para outra, melhor, optimista, consoladora, gratificante, feliz. Este fenómeno pode ser visto, por conseguinte, como patológico e merece intervenção, no sentido de ser revertido o estado de humor depressivo que lhe está na origem, procurando restaurar um estado psíquico de tonalidade positiva, favorável à fruição preservação da vida. Os especialistas em saúde mental dominam este assunto e têm, na actualidade, boas armas preventivas e terapêuticas contra o “suicídio doença”.
Todavia, a intervenção na prevenção do suicídio representa uma das acções mais multifactoriais e complexas que uma sociedade pode desenvolver. De facto, as variáveis que contribuem para aquele fenómeno podem ser tão díspares e diversas de estado para estado, de geração para geração ou de estilo de vida para estilo de vida. “Desenvolvimento humano não é sinónimo de felicidade humana”, de facto. Esta verdade, incontornável, deve estar bem presente quando nos confrontamos com o facto de que a ocorrência de suicídio é talvez superior nas camadas sociais não tão desfavorecidas cuja sobrevivência não esteja comprometida, mas em que a noção de que “ter o suficiente para que com ele [o dinheiro] não tenha o seu espírito que se preocupar” não é uma máxima de vida segura e apreendida.
Ainda assim, embora reconheça que na generalidade dos casos o suicídio representa um cabal desvio à ética geral Humana, sendo enormes os malefícios que pode proporcionar ao indivíduo e à sociedade em que está inserido, considero que o suicídio em certos contextos pode ser um acto revelador de abnegação e dedicação ao bem comum que chega até a honrar quem o pratica. Não me vou deter nos dilemas jurídicos e silogísticos, que em última instância trazem à colação se a entrega voluntária de um pode contribuir para a vida de outros, como o pai que decide ficar no navio que se afunda, permitindo que a mulher e filhos entrem no bote salva-vidas e sobrevivam ou a própria acção do guerreiro que, ultrapassadas todas as probabilidades de sucesso, sacrifica a própria vida para defesa dos camaradas, da pátria ou dos seus valores (como o kamikase, o fukuryu, o shinyo ou o kaiten, de há uns meros 70 anos atrás…). São casos limite, em situações limite da existência, dilemáticas e complexas, que comprometem que haja uma norma geral que regule esta temática para todas as circunstâncias.(continua)

Anónimo disse...

Nesta flexibilidade e relatividade, devemos encarar também a própria morte, ocorrência tida como funesta e dolorosa, como fenómeno genuinamente natural e imprescindível para o necessário equilíbrio da própria Natureza e Humanidade. Para o cristão, a morte faz parte do mistério Pascal de Cristo. É a necessária passagem (páscoa) da morte para a verdadeira Vida, a vida do espírito, que só se completa na libertação da dimensão material terrena. Jesus, enquanto Cristo, “suicidou-se”, renovou a antiga aliança, restrita a uns quantos pela sua herança genética, alargando os seus benefícios a todos os filhos de Adão (todos os seres humanos). O sacrifício abnegado da sua própria vida, voluntariamente, foi uma demonstração de como a anulação de um permite a salvação (felicidade) de muitos. O simbolismo judaico subjacente a este mito ou alegoria, que o crente cristão crê, pela mística da Fé, ser dogmaticamente uma verdade, recapitula todo o percurso definido na economia da salvação hebraica numa síntese inovadora. Uma das maiores inovações desta concepção advém de ter, efectivamente, vindo colocar o Homem “não por baixo, mas ao lado do Criador”, situação esta tão explícita na Ascensão, em que o Cristo demonstrou que o Homem, em toda a sua natureza, carnal e espiritual, é digna de entrar no Céu, como obra sublime do Criador (a tal obra criada à Sua imagem e semelhança), apenas decaída por sua livre iniciativa e vontade.
Este “decaimento”, não sendo condenação nem suplício, é mero fruto e expressão do exercício do livre arbítrio que assiste ao Homem, manifestação clara da liberdade que caracteriza a sua vontade, mais uma demonstração da sua incomensurável perfeição. Liberdade de fazer bem, liberdade de fazer mal, liberdade de escolher, sempre liberdade, desde que baseada no discernimento, na sabedoria.
Quem “escolhe” morrer porque vive afundado no beco sem saída da depressão, não escolhe verdadeiramente, porque não é livre da sua decisão. Transgride a ética da vida humana porque está toldado por uma patologia, psíquica, quem sabe contaminada por condicionalismos pessoais e sociais tão diferentes.
Quem escolhe morrer porque, lúcido do seu acto, com ele pretende cumprir um objectivo supostamente superior, ofende o princípio da inviolabilidade da vida Humana, mas procura alcançar o cumprimento de princípios alegadamente tão cardinais como a vida.
Marco Aurélio defendia que poucas coisas são efectivamente importantes. A vida Humana será sem dúvida uma delas, mas o viver ou morrer talvez não sejam o cerne da existência. Os valores que a animam e norteiam (sejam éticos, estéticos ou religiosos) serão quiçá o âmago da ontologia do Homem. Haja tempo para a reflexão e ocasião para o ócio para consolidar em cada um de nós uma experiência mais certa e um juízo mais fácil, e decidir bem, mesmo quando a resposta parece impossível.

João Vasconcelos

O que é que torna alguém heróico? Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e da sua maior esperança.
F. Nietzsche