terça-feira, setembro 16, 2014

I Hope the Russians Love Their Children Too

O meu amor desafiou-me para que identificasse publicamente os pedaços de autor que mais me tivessem tocado ou impressionado.
A rede social global pareceu-me desadequada para cumprir esta tarefa, porque gatinhos a ronronar, tropelias juvenis e quedas hilariantes rimam pouco com a seriedade que o assunto requer.
E também porque, todos sabemos, conjuntos de palavras com mais de cento e sessenta caracteres sem vídeo começam a constituir-se como spam em enormes franjas da população que toma a preguiça como amiga e a passividade intelectual como modo de vida.
Não é fácil a tarefa, nem tão pouco isenta de riscos.
A nossa relação com a escrita cola-nos, invariavelmente, a correntes de pensamento, mostra aquilo de que gostamos e com o qual nos identificamos, o que, nem sempre, poderá estar alinhado com o consumo de massas e com a padronização de gostos que a sociedade suavemente nos quer incutir.
Assumindo essa vulnerabilidade, decidi fazê-lo neste fórum, curiosamente onde já tinha, há muito tempo atrás, colocado alguns dos livros da minha vida.
Surpreendentemente, não foi de nenhum deles, autor ou criação, que povoou a minha mente quando decidi elaborar mentalmente a famigerada lista.
Um poema em inglês ribomba no meu cérebro, repete-se vezes sem conta... eu, que tantas vezes me recusei a ler obras que não as da minha língua materna, convicto de que só assim aprimoraria e honraria uma das mais poderosas armas da nossa nacionalidade...
... e o poema que não cessa de eclodir, reverberando em cada centímetro do meu corpo:

I Know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan's poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.

Impressionante a lucidez de quem veste a pele do Major Robert Gregory e encarna a posição de um aviador que, na Primeira Guerra Mundial antecipa o seu trágico destino, numa luta que não é a sua, num desfecho que, independentemente de qual seja, será irrelevante para o destino do seu povo.
Hoje, mais do que nunca, me pareceu este poema apropriado.
Quem são aqueles que amamos?
Quem são aqueles que guardamos?
Quem são aqueles contra quem lutamos?
A segunda e terceira pergunta não têm uma resposta permanente, o inverso da primeira, que nos faz querer existir todos os dias da nossa vida.
Amamos aqueles que guardamos? Guardamos aqueles que amamos?
Todos quantos vivem e não sobrevivem se deveriam questionar e resolver dentro de si esta ambiguidade que, não o sendo, pode levar à manipulação dos que sobrevivem sem viver, com consequências biologicamente irreparáveis em quem, aguerridamente, ama... e guarda... e não odeia.

Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight,
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

Brilhante, na constatação do que acabo de descrever.
O inebriante mas alucinantemente perigoso prazer, inenarrável a quem nunca dançou com as nuvens, aliado à ausência de valores pelos quais erguer a voz na adversidade, à irrelevância da existência sem alguém a quem amar e guardar, conduz a uma mistura explosiva de exposição ao perigo e potencial exploração por aqueles, poucos, que lutando, jamais lutarão, oferecendo a milhões, placidamente, o derradeiro sacrifício sem que a ele alguma vez se exponham.
Poderosíssimo poema, poderosíssima escrita que, reconheço, não pode ser traduzida sem perder parte da magia que encerra.
William Butler Yeats, o meu respeito, a minha admiração e a constatação de que a poesia tem necessariamente que ser a maravilhosa exceção na pouco flexível regra de que a Língua da minha vizinha é muito pior do que a minha!

Afonso Gaiolas
 

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