quinta-feira, setembro 22, 2005

A redoma

Parti para longe...
Demasiadas horas, demasiadas milhas náuticas a separar terra e coração...
De cada vez que parto, sei que volto diferente. Se algo de bom pode haver em nos afastarmos, é sem dúvida a mudança de perspectiva perante o marasmo putrefacto que exala de cada esquina de cada rua, de cada bairro, de cada povoado deste país.
Sem chamar galinhas de vizinhas à conversa, a verdade é que a sensibilidade perante pormenores aparentemente insignificantes, e aos quais não daríamos importância alguma quando absortos na nossa vida de autómatos alimentadores do monstro marinho chamado sociedade, muda radicalmente, qual efeito de comprimido vermelho recém-tomado!
Já algum tempo me fazia esta pergunta, provavelmente ingénua, provavelmente descabida a olhos turvos de cifrões... do porquê da inexistência de corredores específicos para pedestres e ciclistas em todas as vias do nosso país, fossem elas municipais, regionais ou nacionais. Mas só contemplando a felicidade de uma família que, descansadamente, se pode deslocar de um ponto a outro, abdicando do seu veículo automóvel, sem receio de se tornar protagonista de uma cena de atropelo e fuga, no papel principal de acidentado, pude passar para o "papel", o que há tanto tempo pensava sem expressar.
Que desperdício de alcatrão... voltam os cifrões a esgrimir como argumento de contenção orçamental.
Que falta de visão, respondo eu sem sequer precisar de erguer o florete.
Não são as distâncias a percorrer que são grandes... as nossas pernas é que ficaram mais curtas. Lembro-me das histórias mais rocambolescas, contadas na primeira pessoa, de lágrimas de saudade ao canto do olho, de deslocações entre aldeias ou vilas, separadas por vários quilómetros, nos tempos em que o carro era a excepção e o meio de transporte mais utilizado fazia juz ao lema... "um bocado a pé, um bocado andando"!
Um bom par de décadas passaram... é verdade. Mas em vez de protegermos quem queira, ao invés de contribuir para o agravamento do défice da balança comercial portuguesa, consumir calorias no lugar de litros de petróleo refinado, deixando Portugal de fora da vergonhosa estatística dos que morrem, não por falta de alimentos, mas pelo seu consumo excessivo face à energia que dispendem, alcatroamos uma, duas, se necessárias três faixas de rodagem, eliminando bermas, passeios, ou quaisquer outros caminhos que se possam tornar pedonais. Detesto o olhar fulminante com que a esmagadora maioria dos condutores me trespassa, sempre que tento despir a pele de carneiro, saindo do movimento ao qual empresta o nome, e resolvo partilhar um qualquer caminho num qualquer meio de transporte que não o mesmo que conduzem. Já tentei de tudo... a pé, de patins, ou de bicicleta... o resultado é sempre o mesmo. A menos que possuas um tubo de escape de gases carbónicos, não és bem-vindo à válvula de alívio de recalcamentos laborais ou sentimentais... perdão, estrada!
E nascerá ainda o dia em que o monstro marinho nos culpabilizará por delapidarmos demasiado do erário público em luta contra o entupimento de artérias, veias e capilares... sem perceber que na sua ânsia de modernidade, perdeu a noção do equilíbrio, do bom senso... mas sobretudo do valor de um bom passeio pelo parque!