quarta-feira, junho 29, 2011

Ideias que dão frutos

E se hoje, apenas porque podia, por um qualquer devaneio mental menos ponderado, decidisse privatizar os metros cúbicos de ar que pairam sobre a sua cabeça?
E se, em consequência de tal acção, o obrigasse a pagar à minha recém-constituída empresa, uma taxa de inalação da preciosa mistura de azoto, oxigénio, árgon, dióxido de carbono e outros gases menos abundantes, que constituiriam a minha mais-valia bolsista - a atmosfera (marca registada por mim!).
Mas iria mais longe ainda... para o forçar a adquirir os meus metros cúbicos de ar puro (a preços condizentes com uma empresa que detém o monopólio de exploração de um bem essencial), convenceria o poder local, regional e nacional da necessidade de injectar, nos espaços onde a minha jurisdição não me permitisse exercer tão nobre actividade profissional, uma replicação da atmosfera de Titã, que o metano é um gás que também deve merecer lugar de destaque na arquitectura ambiental e paisagística de um país.
Não lhe restaria outra opção... senão pagar para poder continuar a viver.
O radicalismo é terrível e tem destas coisas. Faz parecerem ridículos exemplos que não nos são familiares.
E em relação àqueles com que lidamos todos os dias, e que nos habituámos a aceitar como fatalidades?
Vivemos hoje um cenário de grande sufoco financeiro. À sobrecarga de impostos, adiciona-se a mistura explosiva de congelamento de remunerações e aumento de inflação. 
Simultaneamente, a dieta mediterrânica sofre ferozes ataques das mega cadeias de restauração alimentar neocolonizadoras (que, fazendo juz ao nome... contribuem para o aumento da incidência do cancro do cólon na população), e nós, os principais interessados em manter tão saudável, mas sobretudo económico estilo de vida, nada fazemos para contrariar o que parece ser um ridículo destino.
A alegoria que vos apresentei no início do artigo tem o intuito de abanar consciências para um dos maiores exemplos de hipocrisia humana com que a nossa auto-proclamada avançada sociedade nos presenteia, e que foi sendo  passivamente aceite ao longo de múltiplas gerações de Portugueses.
Se é verdade que todos se indignariam perante tamanha atmosférica atrocidade capitalista , por que razão não se incomodam se negarmos à população que não é dona de um pedaço de terra, o acesso a um bem de primeira necessidade que a  natureza nos oferece desde o início dos tempos?
Quantas árvores de fruto conhece plantadas em espaços públicos, acessíveis a todos os cidadãos?
Dir-me-ão (sem surpresa, porque o vosso interlocutor é alentejano) que diversas localidades adoptaram o citrino como imagem de marca das suas ruas. Mas, surpresa das surpresas, são amargas as laranjas ou tangerinas que essas árvores nos oferecem.
Poderia ser pior?
Julgo que não.
Porque o racional maior de tamanha brutidade é a protecção dos produtores frutícolas e o seu negócio (lembram-se da marca registada atmosfera?)!!
Porque mesmo sem qualquer tratamento priveligiado, uma árvore autóctone florescerá e dará maravilhosos frutos, de fazer inveja ao Continente, Pingo Doce e afins, fazendo cair por terra o argumento da necessidade de mão-de-obra adicional.
E porque o argumento do roubo nocturno e contrabando não faria sentido, uma vez que estaríamos a falar de algo desprovido de valor local (por excesso de oferta).
Imaginem novo exemplo, para explicar este nível de hipocrisia. 
Como se sentiria se, no parque onde habitualmente brinca com os seus filhos, cortassem a água do bebedouro público, com a justificação de que seria necessário proteger o negócio de venda de água engarrafada da esplanada contígua ao dito espaço?
E como é que, sendo certo que todos os exemplos anteriores nos indignam, no caso de se tratar de assegurar gratuitamente à população um precioso complemento nutricional, fonte de vitaminas, minerais, antioxidantes, entre outros componentes benéficos ao nosso organismo, assobiamos para o lado e fingimos não ver?
Ou pior, estamos tão embrenhados nas nossas vidinhas tão excitantezinhas, que nem nos apercebemos de quão estupidificados nos tornámos ao acharmos isto "normal"!
Estou apostado em exercer o meu círculo de influência para alterar o que conseguir, enquanto puder, para que o mundo fique um pouco melhor do que quando o encontrei (eu, o senhor Bear Grylls e todos os que abraçaram o espírito do escutismo como forma de vida). E nesse sentido, exorto-vos a, por um lado, intelectualmente promover este ideal de partilha comum e, por outro, fisicamente actuar à vossa escala, para mudar as mentalidades tacanhas de tantos intervenientes políticos do nosso país. No meu caso, carinhosamente protejo e sacio a sede a uma figueira alentejana imigrada em terras vidreiras, até que possamos todos, família, vizinhos e passarada indígena usufruir das propriedades laxantes, diuréticas e desintoxicantes de tão apreciado fruto, alimento preferencial dos atletas da Grécia Antiga e do meu pai também!
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"A mão que embala o berço é a mão que domina o mundo"
(Tente estender o seu berço para além da descendência. Verá que há muitas mais pessoas que também gostam / precisam de ser embaladas. No final, domine o mundo sem ceder ao lado negro da Força!) 
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Um abraço,
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Afonso Gaiolas

domingo, junho 12, 2011

Período de reflexão

Terminou mais um sufrágio nacional.
Uma vez mais, escolhemos quem nos representará na acção governativa, durante os próximos anos.
Verdes e vermelhos, azuis e laranjas, pretos e brancos, todos se esforçaram por atrair a atenção dos cidadãos votantes. Uns com mais, outros com menos recursos financeiros, todos desejaram dar um ar da sua graça e expor publicamente os motivos pelos quais mereceriam a confiança dos portugueses para que lhes fosse entregue a função de comandar o navio em tão conturbado oceano de dívidas e incertezas.
Não tenciono, nem hoje nem provavelmente nos próximos vinte e cinco anos, politizar o meu raciocínio falado ou escrito. Não será pois, esse, o objectivo deste artigo. Tão-somente me deterei no famigerado período de reflexão que, em virtude do seu incumprimento, foi este ano responsável por algumas detenções e levantamento de autos de contra-ordenação.
Diz então a lei eleitoral que, desde a véspera do dia das eleições até ao término do período de votação na região autónoma dos Açores (por a hora legal estar atrasada 60 minutos em relação à plataforma continental de Portugal), não é permitida a execução de propaganda eleitoral de qualquer espécie. Quer isto dizer que o incentivo ao voto discriminado está terminantemente proibido durante este período.
Diz também outra lei, desta feita a 97/88 de 17 de Agosto - Afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda, no número 2 do artigo 6º que, quanto aos meios amovíveis de propaganda, "compete às câmaras municipais, ouvidos os interessados, definir os prazos e condições de remoção dos meios de propaganda utilizados."
Estou absolutamente concordante com o texto da primeira lei, por julgar ser necessário uma pausa em todo o ruído de fundo, para que todos possam conscientemente julgar os protagonistas do processo.
Em relação à segunda lei, denota claramente um desajuste face à cultura mediterrânica de dobragem de regras em função da conveniência pessoal ou da colectividade que se representa. Não é admissível que se dê espaço de manobra às entidades políticas para que, utilizando as mais variadas formas de pressão e subterfúgios, possam protelar a retirada de toda a propaganda gráfica dos espaços públicos do nosso país, uma vez finda a campanha eleitoral.
Graças a este conveniente parágrafo legislativo, conseguimos assistir ao inqualificável paradoxo eleitoral de, ainda que sendo proibida a propaganda no dia da votação, o caminho que se percorre até à urna  poder ser um calvário visual de vota neste, vota naquele, ou vota ainda naqueloutro em cartazes megalómanos (ah... mas com garantia de inviolabilidade a quinhentos metros da mesa de voto... )!
Vou-me socorrer da redacção do número 1 do artigo 141º  da lei 14/79 de 16 de Maio - Lei Eleitoral da Assembleia da República para enfatizar tudo o que acabei de defender: - "aquele que no dia da eleição ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio será punido com prisão até seis meses e multa de 500$ a 5.000$."
Fiquei na dúvida se estaria a ser injusto com as pessoas ou instituições. É que na minha opinião, em última instância, também o presidente da câmara teria que ser responsabilizado, caso tivesse definido como prazo limite para a retirada da propaganda, uma data subsequente ao início do primeiro nanossegundo do período de reflexão.
Mas não, porque o vocábulo propaganda significa mesmo o conjunto de actos que têm por fim propagar uma ideia, opinião ou doutrina. E, claramente é exactamente disso que se trata, a quinhentos e um metros da urna de voto!
Todos nos habituámos a ver pinturas murais, cartazes megalómanos e outros de menores dimensões que perduram por vezes meses e anos sem que seja exigida a sua retirada ou responsabilizadas as instituições incumpridoras no processo de remoção. Por nos termos habituado, passa a ser admissível?
E que dizer quando a normalidade da ilegalidade consegue chegar a letra de lei?
Estupefactos?
Também eu!
Deixo-vos então a transcrição do número 2 do artigo 139º da mesmíssima Lei Eleitoral da Assembleia da República, que nos fala do dano em material de propaganda eleitoral: - "Não serão punidos os factos previstos no número anterior (destruição do material de propaganda) se o material de propaganda houver sido afixado na própria casa ou estabelecimento do agente sem o seu consentimento ou contiver matéria francamente desactualizada."
Pois bem, a lei reconhece aqui tacitamente a existência de propaganda não removida de eleições anteriores (que por ter atravessado o período de reflexão se constitui ilegal), apenas porque quer objectivar  a ilibação de qualquer pessoa de responsabilidades perante a sua destruição. No meu entender, devia era compensar pecuniariamente esse cidadão por ser ele a executar uma tarefa que a instituição política não realizou, e que o Estado se reconhece - em versão legislada - incompetente para solucionar!
Este é o tempo ideal para explicar às pessoas que a Nação Portuguesa assenta numa base sólida de igualdade perante a lei. Mas mais importante que isso... explicar aos seus redactores a bidireccionalidade da palavra igualdade, de modo a salvaguardar a permanente garantia de construções frásicas de carácter legislativo isentas de vontades pessoais, sindicais ou partidárias.
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"Fecha os olhos para não seres cego."
Virgílio Ferreira
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Um abraço,
Afonso Gaiolas