sexta-feira, dezembro 09, 2005

A teoria da Segunda Oportunidade

As "discussões filosóficas" que fui tendo, ao longo da minha vida, com as diversas personagens que comigo contracenaram nestes últimos trinta anos, ajudaram-me a construir uma base de sustentação sobre a qual edifico a minha opinião acerca do castigo supremo a aplicar àqueles que cometam o supremo dos crimes, e à qual me habituei a chamar Teoria da Segunda Oportunidade.
Para quem acredita que o cair da última folha... que o derradeiro suspiro coincide com a derradeira consciência de existência, à qual apenas sobrevive a dolorosa e inapagável memória, torna-se insustentável a angústia de saber ser utilizada esta via como forma de combater o fardo da delinquência que as sociedades têm que carregar.
Correu mundo a milionésima execução no interior das fronteiras do Estado que se arvora como o modelo a seguir neste nosso querido planeta. Pior que a falsa modéstia, só a arrogância assumida... e neste caso, no país que, a avaliar pelos finais de discurso dos seus governantes, em jeito de submissa súplica, Deus mais vezes abençoou, tão levianamente se quebra a quinta das dez mais básicas regras que Ele sussurrou a Moisés no Monte Sinai. Apetece-me até dizer que de falsa moralidade está o quente Inferno cheio, e ainda assim não tão quente como Beja!
Sendo certo que todos os actos ilícitos, à luz do que em cada tempo consideramos moralmente aceite ou condenável, devem ser exemplarmente punidos, a noção de proporcionalidade não pode ser entendida à letra para cumprir este último objectivo, sob pena de nos tornarmos também implicitamente (porque todos, directa ou indirectamente escolhemos as nossas leis)ladrões, violadores, ou... assassinos!
A minha visão da palavra castigo, que tento aplicar em todas as ocasiões em que me é exigida interacção com o mundo, está directamente relacionada com os conceitos de consciência do erro e transformação regenerativa.
Infelizmente, nem todos os seres humanos puderam nascer e crescer no seio de famílias ou comunidades onde lhes pudesse ser incutida, com traço indelével, a noção de Bem e de Mal, de modo a que, na maturação da sua personalidade, se tornassem indivíduos tão bons ou melhores que a geração anterior, ao invés de se tornarem tão maus ou piores que a geração que os precedeu. Na sua ordem de ideias, natural pode ser o furto; natural pode ser o pai agredir a mãe ; suportável pode ser a morte como meio para atingir um fim.
E afinal, como poderia saber o Tarzan quanta falta de educação seria comer com as mãos, sentado, à mesa, antes da Jane o endoutrinar?
Fácil é concluir que, quanto mais criminalidade houver, mais incompetente se tem que assumir a sociedade, por não conseguir transmitir os valores que a regem a um cada vez maior número de indivíduos. E, de uma vez por todas, temos que aprender a assumir que a sociedade somos todos e cada um de nós, acabando com o refúgio na palavra Estado, esse conceito demasiado etéreo que facilmente nos iliba de quaisquer responsabilidades que nos queiram conferir.
Nos tempos em que jogava à bola nas ruas da minha terra, com duas pedras a servirem de baliza improvisada, provando a sua característica de amovibilidade o número de vezes directamente proporcional ao número de carros que atravessassem a dita via durante o jogo, nesse tempo, a sociedade não fugia à responsabilidade de formar os projectos de Homens, nem os progenitores se sentiam feridos na sua honra se alguém que não eles, corrigisse ou repreendesse os seus filhos. Quando muito, uma seta apontada ao orgulho, pela falha daqueles que sob o seu tecto coabitam.
Hoje, fruto da indiferença e do culto do umbigo, nem a sociedade se interessa por formar os jovens, nem a família tolera que alguém lhes diga ou publicamente demonstre que o ser perfeito ainda não nasceu, nem tem o apelido pelo qual respondem.
Se acrescentarmos agora, à indiferença social, a ausência de suporte familiar, ainda que do tipo de acabei de descrever, rapidamente conseguimos perceber a existência de pessoas desajustadas, incapazes de se integrar no complexo puzzle em que se tornou a vida em sociedade.
Devemos desculpar-lhes portanto os actos ilícitos, apenas porque não tinham conhecimento da ilegalidade dos mesmos?
Não!
Mas temos a obrigação de lhes mostrar a luz, de modo a que se adquira a consciência do erro cometido e se dê a transformação regenerativa que falava há pouco.
Deve a privação da liberdade ser uma das medidas a adoptar, até que essa consciência tenha sido adquirida e a transformação efectuada?
Sim, assegurando durante esse hiato temporal, a protecção dos demais elementos constituintes da sociedade.
Não entendo, contudo, que a privação da liberdade se efectue, qual pacote de férias na Riviera Maya, nos moldes de "tudo incluído", sem responsabilidades perante os demais. Na minha opinião, o trabalho comunitário remunerado (indexado ao salário mínimo nacional), em função das habilitações ou habilidades de cada um, deveria ser uma obrigatoriedade e não uma opção, de modo a assegurar, quer o pagamento das despesas do seu cativeiro, quer as indemnizações às pessoas ou entidades lesadas pelos seus actos, devendo uma percentagem mínima estar no entanto salvaguardada para o próprio, que serviria de demonstração de acumulação de riqueza como consequência do esforço honesto individual.
O tempo de privação da liberdade variaria em função da gravidade moral do acto, directamente proporcional à sua dívida material, sendo assegurada a todos, no entanto, uma segunda oportunidade.
É tempo de entrarmos com o factor emocional nesta dissertação.
E se a desgraça nos acontecesse entre portas? Teríamos a mesma frieza de análise ou de complacência perante o ladrão, violador ou assassino?
É imperativa a necessidade racional de não existirem excepções, sob pena de deitarmos por terra toda a elevação que conseguimos à humanidade, regressando ao tempo medieval da justiça pelas próprias mãos, cortando mãos, tirando olhos, ou apedrejando cabeças que no final, nos olharão de igual para igual, de animal para animal!
Teleportamo-nos agora para o final do castigo, assumida que está a consciência do erro e a transformação regenerativa. É importante referir que defendo que exista um tempo de pena mínimo e não máximo, que poderá ser prolongado até que a transformação regenerativa se tenha processado. Asseguram-se assim a resolução dos casos difíceis em que, apesar da tomada de consciência do acto, não se tenha verificado a transformação regenerativa do indivíduo, havendo pois fortes probabilidades de reincidência no acto ilícito, deixando a sociedade desprotegida.
Não havendo então no final do castigo mais desculpas para que esse cidadão não seja doravante exemplar, ainda assim ele o volta a cometer (no pior caso, são já pelo menos duas as vidas humanas inocentes que se perderam), tem a sociedade a obrigação de se proteger, nos casos dos crimes mais hediondos, pelo permanente afastamento desse seu elemento da vida em comum com os demais, ficando obrigado até ao fim da sua existência à reclusão e trabalho em prol da comunidade que violentou!
Um abraço a todos,
Afonso