sexta-feira, dezembro 09, 2005

A teoria da Segunda Oportunidade

As "discussões filosóficas" que fui tendo, ao longo da minha vida, com as diversas personagens que comigo contracenaram nestes últimos trinta anos, ajudaram-me a construir uma base de sustentação sobre a qual edifico a minha opinião acerca do castigo supremo a aplicar àqueles que cometam o supremo dos crimes, e à qual me habituei a chamar Teoria da Segunda Oportunidade.
Para quem acredita que o cair da última folha... que o derradeiro suspiro coincide com a derradeira consciência de existência, à qual apenas sobrevive a dolorosa e inapagável memória, torna-se insustentável a angústia de saber ser utilizada esta via como forma de combater o fardo da delinquência que as sociedades têm que carregar.
Correu mundo a milionésima execução no interior das fronteiras do Estado que se arvora como o modelo a seguir neste nosso querido planeta. Pior que a falsa modéstia, só a arrogância assumida... e neste caso, no país que, a avaliar pelos finais de discurso dos seus governantes, em jeito de submissa súplica, Deus mais vezes abençoou, tão levianamente se quebra a quinta das dez mais básicas regras que Ele sussurrou a Moisés no Monte Sinai. Apetece-me até dizer que de falsa moralidade está o quente Inferno cheio, e ainda assim não tão quente como Beja!
Sendo certo que todos os actos ilícitos, à luz do que em cada tempo consideramos moralmente aceite ou condenável, devem ser exemplarmente punidos, a noção de proporcionalidade não pode ser entendida à letra para cumprir este último objectivo, sob pena de nos tornarmos também implicitamente (porque todos, directa ou indirectamente escolhemos as nossas leis)ladrões, violadores, ou... assassinos!
A minha visão da palavra castigo, que tento aplicar em todas as ocasiões em que me é exigida interacção com o mundo, está directamente relacionada com os conceitos de consciência do erro e transformação regenerativa.
Infelizmente, nem todos os seres humanos puderam nascer e crescer no seio de famílias ou comunidades onde lhes pudesse ser incutida, com traço indelével, a noção de Bem e de Mal, de modo a que, na maturação da sua personalidade, se tornassem indivíduos tão bons ou melhores que a geração anterior, ao invés de se tornarem tão maus ou piores que a geração que os precedeu. Na sua ordem de ideias, natural pode ser o furto; natural pode ser o pai agredir a mãe ; suportável pode ser a morte como meio para atingir um fim.
E afinal, como poderia saber o Tarzan quanta falta de educação seria comer com as mãos, sentado, à mesa, antes da Jane o endoutrinar?
Fácil é concluir que, quanto mais criminalidade houver, mais incompetente se tem que assumir a sociedade, por não conseguir transmitir os valores que a regem a um cada vez maior número de indivíduos. E, de uma vez por todas, temos que aprender a assumir que a sociedade somos todos e cada um de nós, acabando com o refúgio na palavra Estado, esse conceito demasiado etéreo que facilmente nos iliba de quaisquer responsabilidades que nos queiram conferir.
Nos tempos em que jogava à bola nas ruas da minha terra, com duas pedras a servirem de baliza improvisada, provando a sua característica de amovibilidade o número de vezes directamente proporcional ao número de carros que atravessassem a dita via durante o jogo, nesse tempo, a sociedade não fugia à responsabilidade de formar os projectos de Homens, nem os progenitores se sentiam feridos na sua honra se alguém que não eles, corrigisse ou repreendesse os seus filhos. Quando muito, uma seta apontada ao orgulho, pela falha daqueles que sob o seu tecto coabitam.
Hoje, fruto da indiferença e do culto do umbigo, nem a sociedade se interessa por formar os jovens, nem a família tolera que alguém lhes diga ou publicamente demonstre que o ser perfeito ainda não nasceu, nem tem o apelido pelo qual respondem.
Se acrescentarmos agora, à indiferença social, a ausência de suporte familiar, ainda que do tipo de acabei de descrever, rapidamente conseguimos perceber a existência de pessoas desajustadas, incapazes de se integrar no complexo puzzle em que se tornou a vida em sociedade.
Devemos desculpar-lhes portanto os actos ilícitos, apenas porque não tinham conhecimento da ilegalidade dos mesmos?
Não!
Mas temos a obrigação de lhes mostrar a luz, de modo a que se adquira a consciência do erro cometido e se dê a transformação regenerativa que falava há pouco.
Deve a privação da liberdade ser uma das medidas a adoptar, até que essa consciência tenha sido adquirida e a transformação efectuada?
Sim, assegurando durante esse hiato temporal, a protecção dos demais elementos constituintes da sociedade.
Não entendo, contudo, que a privação da liberdade se efectue, qual pacote de férias na Riviera Maya, nos moldes de "tudo incluído", sem responsabilidades perante os demais. Na minha opinião, o trabalho comunitário remunerado (indexado ao salário mínimo nacional), em função das habilitações ou habilidades de cada um, deveria ser uma obrigatoriedade e não uma opção, de modo a assegurar, quer o pagamento das despesas do seu cativeiro, quer as indemnizações às pessoas ou entidades lesadas pelos seus actos, devendo uma percentagem mínima estar no entanto salvaguardada para o próprio, que serviria de demonstração de acumulação de riqueza como consequência do esforço honesto individual.
O tempo de privação da liberdade variaria em função da gravidade moral do acto, directamente proporcional à sua dívida material, sendo assegurada a todos, no entanto, uma segunda oportunidade.
É tempo de entrarmos com o factor emocional nesta dissertação.
E se a desgraça nos acontecesse entre portas? Teríamos a mesma frieza de análise ou de complacência perante o ladrão, violador ou assassino?
É imperativa a necessidade racional de não existirem excepções, sob pena de deitarmos por terra toda a elevação que conseguimos à humanidade, regressando ao tempo medieval da justiça pelas próprias mãos, cortando mãos, tirando olhos, ou apedrejando cabeças que no final, nos olharão de igual para igual, de animal para animal!
Teleportamo-nos agora para o final do castigo, assumida que está a consciência do erro e a transformação regenerativa. É importante referir que defendo que exista um tempo de pena mínimo e não máximo, que poderá ser prolongado até que a transformação regenerativa se tenha processado. Asseguram-se assim a resolução dos casos difíceis em que, apesar da tomada de consciência do acto, não se tenha verificado a transformação regenerativa do indivíduo, havendo pois fortes probabilidades de reincidência no acto ilícito, deixando a sociedade desprotegida.
Não havendo então no final do castigo mais desculpas para que esse cidadão não seja doravante exemplar, ainda assim ele o volta a cometer (no pior caso, são já pelo menos duas as vidas humanas inocentes que se perderam), tem a sociedade a obrigação de se proteger, nos casos dos crimes mais hediondos, pelo permanente afastamento desse seu elemento da vida em comum com os demais, ficando obrigado até ao fim da sua existência à reclusão e trabalho em prol da comunidade que violentou!
Um abraço a todos,
Afonso

quinta-feira, setembro 22, 2005

A redoma

Parti para longe...
Demasiadas horas, demasiadas milhas náuticas a separar terra e coração...
De cada vez que parto, sei que volto diferente. Se algo de bom pode haver em nos afastarmos, é sem dúvida a mudança de perspectiva perante o marasmo putrefacto que exala de cada esquina de cada rua, de cada bairro, de cada povoado deste país.
Sem chamar galinhas de vizinhas à conversa, a verdade é que a sensibilidade perante pormenores aparentemente insignificantes, e aos quais não daríamos importância alguma quando absortos na nossa vida de autómatos alimentadores do monstro marinho chamado sociedade, muda radicalmente, qual efeito de comprimido vermelho recém-tomado!
Já algum tempo me fazia esta pergunta, provavelmente ingénua, provavelmente descabida a olhos turvos de cifrões... do porquê da inexistência de corredores específicos para pedestres e ciclistas em todas as vias do nosso país, fossem elas municipais, regionais ou nacionais. Mas só contemplando a felicidade de uma família que, descansadamente, se pode deslocar de um ponto a outro, abdicando do seu veículo automóvel, sem receio de se tornar protagonista de uma cena de atropelo e fuga, no papel principal de acidentado, pude passar para o "papel", o que há tanto tempo pensava sem expressar.
Que desperdício de alcatrão... voltam os cifrões a esgrimir como argumento de contenção orçamental.
Que falta de visão, respondo eu sem sequer precisar de erguer o florete.
Não são as distâncias a percorrer que são grandes... as nossas pernas é que ficaram mais curtas. Lembro-me das histórias mais rocambolescas, contadas na primeira pessoa, de lágrimas de saudade ao canto do olho, de deslocações entre aldeias ou vilas, separadas por vários quilómetros, nos tempos em que o carro era a excepção e o meio de transporte mais utilizado fazia juz ao lema... "um bocado a pé, um bocado andando"!
Um bom par de décadas passaram... é verdade. Mas em vez de protegermos quem queira, ao invés de contribuir para o agravamento do défice da balança comercial portuguesa, consumir calorias no lugar de litros de petróleo refinado, deixando Portugal de fora da vergonhosa estatística dos que morrem, não por falta de alimentos, mas pelo seu consumo excessivo face à energia que dispendem, alcatroamos uma, duas, se necessárias três faixas de rodagem, eliminando bermas, passeios, ou quaisquer outros caminhos que se possam tornar pedonais. Detesto o olhar fulminante com que a esmagadora maioria dos condutores me trespassa, sempre que tento despir a pele de carneiro, saindo do movimento ao qual empresta o nome, e resolvo partilhar um qualquer caminho num qualquer meio de transporte que não o mesmo que conduzem. Já tentei de tudo... a pé, de patins, ou de bicicleta... o resultado é sempre o mesmo. A menos que possuas um tubo de escape de gases carbónicos, não és bem-vindo à válvula de alívio de recalcamentos laborais ou sentimentais... perdão, estrada!
E nascerá ainda o dia em que o monstro marinho nos culpabilizará por delapidarmos demasiado do erário público em luta contra o entupimento de artérias, veias e capilares... sem perceber que na sua ânsia de modernidade, perdeu a noção do equilíbrio, do bom senso... mas sobretudo do valor de um bom passeio pelo parque!

sexta-feira, abril 22, 2005

Referendo sobre o aborto, ou um aborto de referendo?

Diz-se daqueles que, apesar de receberem contínuos sinais de recusa das fêmeas que tentam cortejar, apesar de engolirem mais sapos do que as margens da ribeira de Cobres albergam, se insinuam de tal forma insistentemente que a conquista do troféu se dá pelo cansaço, diz-se, dizia eu, que a façanha foi conseguida por "esmagamento".
Serve esta analogia para ilustrar o que me parece ser o pensamento de alguns sectores da nossa sociedade face à problemática do aborto em Portugal.
Merece o assunto as controvérsias de proporções bíblicas que proporcionou nos últimos tempos?
Tudo isso e muito mais.
Penso, contudo, que muito se tem rematado, mas continuamente ao poste, poucas vezes se discutindo o que realmente interessa debater.
Vou começar pela própria palavra ABORTO - Acto ou efeito de abortar. Nunca o dicionário refere a aniquilação de um ser como significado da palavra, mas ao invés, define-a como a expulsão do feto antes do fim da gestação, ou ainda "o que nasceu (começou a ter vida exterior) prematuramente".
Curiosa esta diferença conceptual de vida exterior e interior, tão curiosa que nalgumas comunidades que não a nossa, de desenvolvimento imaculado e mãos sempre limpas, se considera a contagem de ambos os períodos na idade das pessoas.
Todos consideramos como o mais hediondo dos crimes a eliminação de um ser recém-nascido. Pois bem, construamos uma simples fita de tempo. No intervalo temporal D+x (sendo D o momento do nascimento e x qualquer período que escolhamos (1 mês, 1 ano, 10 anos, 100 anos, ...), a palavra assassínio estará sempre presente, se decidirmos aniquilar um ser humano em qualquer destas idades. Mais complexa se torna a análise se trocarmos o sinal da adição pelo da subtracção. A partir de que momento consideramos estarem reunidas todas as condições para que, em consciência, possamos afirmar existir VIDA? Pensar demasiado sem conhecimento científico suficiente, torna angustiante a busca de respostas. Confesso que foi o que me aconteceu. Tanto mais que a proliferação de artigos sobre o tema em causa só torna ainda mais nebulosa a formação de uma opinião. Uma fracção de segundo, um dia, dez, doze, dezasseis semanas ou nove meses?
Defendo que as leis de um país se devem reger pelos valores morais que os seus cidadãos consideram ser os correctos, nunca se devendo ceder à tentação de resolver um problema com outro problema. Não me serve portanto o argumento da falta de informação, da má qualidade das instituições de solidariedade social que prestam a educação a quem não pôde ser acolhido por uma família, da inconveniência temporal, ou qualquer outro de cariz similar.
Em coerência devo portanto afirmar que, sendo o valor da vida o mais importante na escala das pertenças individuais, a partir do momento em que cientificamente me provarem que a centelha existe, devem ser repudiados todos os actos contrários ao seu desenvolvimento e maturação.
Pois, pois, centelha é muito vago...
Estava só a tentar ganhar tempo para que o meu cérebro me ajudasse...
Disse cérebro?
Se trocarmos um rim, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
Se trocarmos de coração, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
E se trocarmos de cérebro?
Eu convictamente penso que não. Acredito aliás que a verdadeira fonte de longevidade para os seres humanos reside na substituição de "componentes", preservando ao máximo o único insubstituível - o cérebro.
Reside aqui portanto a resposta à minha pergunta.
É verdade que no momento da concepção, potencialmente temos uma vida a ser gerada. Mas estamos ainda no domínio das células indiferenciadas, e a verdade é que, mexendo os cordelinhos certos, ou errados, conforme o ponto de vista, podemos gerar uma miríade de monstruosidades que com a vida nada têm em comum. Não considero portanto que os inúmeros bancos de embriões existentes pelo mundo sejam imorais, uma vez que a essência de cada ser individual ainda não existe - que o cérebro ainda não se formou.
Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção. Assim sendo, em nome da coerência, até essa data (ou qualquer outra mais precisa que cientificamente seja acreditada) não deveria ser criminalizada, penalizada, ou sequer moralmente condenável a decisão de inviabilizar a evolução do embrião. Dentro deste período, englobar-se-iam os casos excepcionais já previstos na nossa legislação, exceptuando claro o risco de vida para a mãe. Para a análise de malformações, ter-se-ia que fazer um esforço, grande, é certo, mas realizável se bem direccionado no sentido de, por análise genética, se determinar o mais precocemente possível a sanidade de cada futuro ser humano.
Tendo tornado clara a minha posição, resta-me tecer um comentário, necessariamente cáustico ao slogan "A barriga é minha, faço dela o que quiser!", e outras idiotices do mesmo calibre, que só tornam ridícula a posição de algumas mulheres, que pensam ser este o cavalo de batalha final contra a opressão masculina. É verdade que é o indivíduo do sexo feminino o veículo hospedeiro do novo ser que está a ser gerado, e que provavelmente é o acto mais nobre a que alguém poderá em toda a sua vida aspirar, mas isso não tira o direito e simultaneamente a responsabilidade do homem perante o seu filho. Deveríamos pois ver ambos os progenitores condenados pelo acto abortivo, se existisse o conhecimento da acção, mas pela mesma ordem de ideias, negar a unilateralidade materna na decisão de continuar, ou não, com o processo de gestação.
Quanto aos direitos sobre a barriga, esses são inalienáveis (embora algumas devessem receber mais conselhos sobre estética), mas quando se trata da geração de um novo ser, ainda e sempre reaparece o velho, mas sábio conceito, que sumariamente nos lembra que a liberdade individual termina onde começa a liberdade de terceiros.
Decidam em consciência!

sexta-feira, março 18, 2005

Sadismo

A minha última divagação prendeu-se com a ainda imperiosa necessidade global de eliminar seres vivos para que se assegure a sobrevivência da nossa espécie.
Pois bem, hoje reflicto sobre algo bem mais sombrio... a imperiosa necessidade de eliminar ou flagelar seres vivos para gáudio de quem, por razões que só Freud provavelmente descortinaria, encontra prazer e divertimento no sofrimento alheio.
Longe da nobre atitude dos índios da América do Norte, que enalteciam publicamente o sacrifício dos animais que abatiam, por servirem para saciar a fome de todos, conhecemos hoje, virada que está a página do século vinte, e com um bom par de palavras escritas no século vinte e um, um grupo heterogéneo de pessoas, que de comum apenas têm o desrespeito pela vida, tal como a conhecemos.
Apelidar-me-ão de fundamentalista, mas, no âmago da questão, não encontro diferenças entre os caçadores desportivos, os profissionais e os adeptos das touradas, os defensores da elegantíssima manifestação de riqueza a cavalo, que dá pelo nome de caça à raposa, ou os incitadores, patrocinadores, apostadores e assistentes de lutas de cães, de galos, de cães com ursos (de garras devidamente arrancadas, que a peleja quer-se justa), ou de qualquer outra combinação macabra que uma mente desequilibrada possa congeminar.
Por saber da celeuma que tais palavras provocam em muitos milhares de portugueses que, por um lado, não consideram o seu passatempo ou paixão, algo de desonroso ou condenável, e por outro, não se revêem nas restantes personalidades integrantes do grupo atrás mencionado, passarei a explicar as razões de tal agregação e condenação.
A caça, no seu sentido mais puro, sempre existiu, e existirá infelizmente durante mais algum tempo. Mas não é da caça, integrada no conceito da cadeia alimentar, aquela a que me refiro, mas da caça pelo prazer de matar, pela satisfação dos troféus conquistados, quer sejam eles chifres, dentes, garras, ou o animal no seu todo. É impossível encontrar argumentos que sustentem a eliminação de qualquer espécie, com base na necessidade de divertimento, de acréscimos artificais de adrenalina e exibicionismo humano. É tão fácil, nos dias de hoje, encontrar um substituto para esta prática, cumprindo os mesmos objectivos, mas não eliminando qualquer ser vivo (eliminação que será permanente, mesmo para os crentes na versão do cristianismo, uma vez que não existe versão animal para os lugares à direita, ou mesmo à esquerda do Pai).
No caso das touradas, é interessante ver a posição de quem, tentando defender o indefensável, ainda se arvora protector do animal que vê flagelado. Alegam os defensores da tourada (irrelevante diferenciar se de morte ou à portuguesa), que os sortudos animais só existem para que o espectáculo continue, e que, caso contrário, já se teriam extintinguido há muito. Ainda que isso correspondesse à verdade (não estou em condições de o verificar), quereria porventura dizer que os animais, por infinito agradecimento aos seus benfeitores, assinariam um "cheque-lombo" em branco, para toda a eternidade, e todos os dias sem cessar agradeceriam ao criador cada farpa, e porque não, cada orelhinha cortada, ou ainda, glória suprema, cada morte na arena (se ovacionada a preceito) gentilmente concedida. Pela mesma ordem de ideias, qualquer espécie em vias de extinção que fosse protegida, por quem quer que fosse, teria uma dívida de sangue para com o seu defensor, que poderia ser cobrada em qualquer cenário ou arena, para deleite de todos quantos quisessem assistir. Seria sem dúvida então curioso assistir à "lobada" ou à "lince-ibericada", cumpridas a preceito por todos os que, directa ou indirectamente, contribuem para a preservação destas espécies.
Com a tradição inglesa de caça à raposa não perderei muito tempo, uma vez que, felizmente, alguns bons Homens com algum poder, resolveram recentemente proibir tal manifestação medieval.
Quanto às lutas, convém distinguir desde já que, para aqueles cuja frase pré-formatada é a de que os Homens também o fazem, que tudo se resume a uma palavra que faz toda a diferença... voluntarismo. É legítimo (porque cada pessoa é dona de si própria), que dois seres humanos maiores e vacinados, se combinem encontrar num ringue de meia dúzia de metros quadrados, para se esfacelarem mutuamente até que alguém desfaleça ou chegue a hora do jantar, o que acontecer primeiro. Já com os animais o caso muda de figura. É verdade que os animais naturalmente lutam. Mas não é legítimo que os treinemos especificamente para esse fim, nem que os forcemos a tal (que bem bastam as desavenças que envolvem saias... mesmo no mundo animal), mas pior, que vejamos em tudo isso uma forma de diversão, de ganhar dinheiro, ou apenas de passar o tempo.
Em todo o mundo, em todas as épocas, se cometeram barbáries, algumas delas, como demonstrado, se prolongaram até aos dias de hoje. Não defendo que varramos a nossa herança histórica para debaixo do tapete, mas existe uma altura em que devemos, em nome da coerência e da racionalidade, perceber a imoralidade de determinadas práticas que, em nome da cultura e identidade grupal se mantêm vivas e, de uma vez, evoluir para um projecto de Humanidade com objectivos mais altruistas e consentâneos com o nível de desenvolvimento cognitivo que todos julgamos possuir.

segunda-feira, março 14, 2005

Predação

A paternidade tem o dom de nos forçar a pensar, edificar e emitir opiniões, com a responsabilidade de as mesmas constituírem traço indelével na personalidade dos que educamos, em assuntos que habitualmente não nos ousaríamos debruçar, quer por nos deixarmos absorver pela azáfama quotidiana, quer por pura preguiça mental. Opiniões que rapidamente transitam da futilidade da paixão clubística aos valores mais profundos da espiritualidade humana.
É comummente aceite ser relativamente simples demonstrar a separação do Bem e do Mal, no seu sentido mais cru, sendo prodigiosa a capacidade de assimilição deste conceito por parte das crianças (recordo-me, a propósito, das expressões do meu filho de dois anos e meio perante a personagem encarnada pelo ser computorizado Sméagol/Gollum em "O Senhor dos Anéis", que em função da personalidade emergente do momento, caracterizava de "um bocadinho bom", ou "um bocadinho mau"!*).
Enquanto o Bem se mantém cristalino e o Mal obscuro, a tarefa formadora resume-se ao acompanhamento do frenesim catalogador de bons para um lado e maus para outro, sem rodeios nem apelos a instâncias superiores, que a pureza incorruptível das crianças torna desnecessários.
Porém, quando os dois termos se imiscuem, tornando cinzento o que outrora fora preto e branco, tudo se complica.
Vem isto a propósito da mortandade que caracteriza o mundo em que vivemos. Escolhi esta agressiva palavra, por querer abranger todas as relações entre seres vivos que neste planeta habitam. Por querer factualizar a necessidade permanente de algo ou alguém ter que morrer para que a vida continue. É a explicação deste paradoxo, não apenas na visão científica, mas na vertente moral, que se torna num dos maiores desafios com que até hoje alguém se deparou.
É fácil ensinar a cadeia alimentar e orgulhosamente mostrar o Homo Sapiens Sapiens no topo, olhando sobranceiramente para todas as criaturas sob o seu domínio (é interessante notar o facto de, nas ilustrações relativas a este tema, os humanos serem constantemente suprimidos e substituídos pelos predadores irracionais). Pois... parece que nos orgulhamos de, contrariando todas as expectativas, estarmos no topo da cadeia, mas simultaneamente sentimos a suprema ignomínia por dela não nos conseguirmos libertar!
Sou terminantemente contra a ocultação da verdade às crianças, na esperança de as proteger. Na verdade, apenas contribuímos para a perda daquela confiança preciosa que a nossa descendência em nós deposita, e que nos faz sentir no rumo certo da nossa caminhada. Nunca ocultei portanto a proveniência dos alimentos com que se confeccionam as refeições que os fazem crescer e ficar fortes, nem o destino de todos os seres, quando a última centelha de vida se extingue (a visão que acredito ser a correcta... de que tudo estará então consumado).
Apesar de não deixar de sentir o peso da responsabilidade humana pelo atraso no conhecimento científico, que já tivesse levado à sintetização química de todas as substâncias necessárias ao regular funcionamento do nosso organismo e à sua aplicação nas doses diárias ideais, de modo a permitir que as palavras fome e obesidade pudessem fazer companhia aos pterodáctilos e seus irmãos; de modo a nos permitir olhar para a cadeia alimentar do lado de fora, e não sentados no topo. Apesar de tudo isso, aceito ainda a mortandade das espécies que considerámos adequadas (curiosamente aquelas que mais se mostraram amistosas, perdão, domesticáveis) a uma alimentação equilibrada, na esperança de que apenas seja temporariamente. Para os que me estão a acusar neste momento de querer "plastificar" um dos poucos prazeres genuínos que nos restam, lembrarei um episódio da saudosa série "Quinta Dimensão", que sumariamente retratava a vinda à Terra de um conjunto de seres superiores que pretendiam levar nas suas naves tantos humanos quanto possível, para poderem dar uso a um livro intitulado "Como cozinhar para humanos". Só no final, quando as portas das naves já se haviam fechado, é que se percebeu que a palavra "para" tinha sido estrategicamente acrescentada ao título original do livro alienígena. Lembro-me de, na altura, me ter indignado perante tal façanha, que me pareceu profundamente desprezível. A verdade é que custa ter de encarar o problema do ponto de vista de quem é ou será a vítima, piorando um pouco se se tiverem criado laços de confiança prévios. Daí que tudo seja uma questão de escala, tornando absurda a ideia do vegetarianismo por piedade aos animais. Ou estamos fora, ou inteiramente comprometidos com a inevitável cadeia, não havendo moralidade para sentir indignação perante o cenário, que espero se mantenha no domínio da ficção, de existirem degraus acima daquele onde nos sentamos neste momento.


* Devo dizer que rejeito liminarmente qualquer acusação de desrespeito pela classificação dada aos filmes em função da idade a que se destinam. Considero-as perfeitamente válidas, quando não existe supervisão.

sexta-feira, março 11, 2005

Realiza quem atende!

Não me considero uma sumidade no domínio da linguística, nem de todo inflexível no que respeita à evolução da língua portuguesa, em função das necessidades reais de quem, a cada momento, a utiliza.
É verdade que assisto com alguma apreensão à proliferação desta nova forma de comunicação escrita abreviada, fruto da voracidade com que se pretendem transmitir pensamentos e sentimentos, quer pela rede computacional global, quer pelos novos dispositivos portáteis de indução de mutações celulares , que atingem hoje uma taxa de penetração tão elevada no nosso país que apenas encontram já paralelismo no número de simpatizantes e apoiantes do Benfica - aproximadamente 11 milhões, só em Portugal continental. Mas mesmo este tipo de escrita glutona tem um racional implícito, quer na poupança forçada de caracteres a que a tirania das mensagens escritas sujeita os seus utilizadores, quer na irreverência, mas simultaneamente fragilidade natural de quem, no auge da adolescência, pretende, por um lado, estabelecer um ponto de rotura com o "status quo" vigente, mas por outro, não se consegue libertar do jugo da tribo a que pertence, utilizando palavras e expressões mirabolantes, que nalguns casos, acredito que não goste, mas que o livra do rótulo de extraterrestre pelos seus pares. No meu caso, confesso que me divirto mais a tentar decifrar a escrita do canal SMS TV do que a assistir ao quadragésimo terceiro episódio dos Malucos do Riso.
Mas, se para estes devaneios da juventude, a atitude correcta é a tolerância, na convicção de que, tal como o "piercing" na língua, também este tipo de escrita desaparecerá com o advento dos dentes do siso, já para o "neo chico-espertismo" tipicamente português confesso que não tenho paciência. Piora um pouco se a proveniência for de alguém que exerça um cargo de elevada responsabilidade perante a Nação.
Ouvi há alguns dias um digníssimo deputado da assembleia da República (desconheço-lhe o nome, coloração política, ou mesmo se se mantém em funções após mais esta dança das cadeiras), produzir uma espantosa declaração à comunicação social, introduzindo, algures no seu discurso, as palavras realizaram e atendeu.
Estarão todos certamente a pensar por que raio haveria de implicar com estas duas conjugações verbais!!
Não terá esta ou qualquer outra pessoa a liberdade de as utilizar as vezes que desejar nas suas construções frásicas?
Concordo inteiramente com todos, incluindo os mais exaltados.
Passo no entanto a explicar!
Este famigerado senhor, na ânsia de exibir uma variedade e eloquência vocabular acima da média, considerou, a dada altura da sua exposição, que "as pessoas ainda não realizaram determinado assunto" e, posteriormente, que "determinada pessoa atendeu a uma conferência". Não é necessário recorrer ao dicionário para perceber o significado de ambas as palavras, mas para as entender neste contexto, nem com a ajuda da mais recente "versão brasilera"!
Demorei um pouco até perceber o mistério.
Melhor do que dar um sotaque inglês às palavras portuguesas e fazer um brilharete em qualquer situação, qual Zé zé Camarinha no reino dos Algarves, só mesmo pegar nas palavras inglesas, encontrar o mais aproximado equivalente português e utilizá-las no contexto em que seriam empregues no original anglo-saxónico. Infalível, especialmente para impressionar os papalvos que nunca saíram de Cacilhas.
O que mais me custa no meio de tudo isto é que, se um dia confrontassem este senhor com as monstruosidades que profere em nome da elegância pato bravista, muito provavelmente argumentaria que não tinha culpa, que a Assembleia da República não lhe tinha dado um curso de aperfeiçoamento da língua portuguesa e, muito provavelmente, tudo se resolveria com um subsídio da comunidade europeia para o auxílio às vítimas de enxovalhanço literário.
Fiquem bem!
The Jackal

segunda-feira, março 07, 2005

Falta-nos a água ou a omnipresença?

Foi tão grande o júbilo pela recepção de tantas e tão efusivas mensagens de contentamento pela abertura deste espaço de meditação que não caibo em mim de contente. Bem, na verdade apenas recebi duas, e suspeitas por sinal... Mas enfim, se buscasse a glória e a fortuna teria enveredado por uma carreira que me permitisse mandar calar os adeptos das equipas adversárias em pleno estádio, anunciar aos sete ventos que sou o melhor do mundo, e ainda assim ver ofuscada a arrogância da atitude e enaltecida a qualidade máscula de tão viril proeza.
Adiante!
Durante este interregno, questionei-me acerca do tema sobre o qual mais me agradaria (desculpem-me o egoísmo) dissertar. Depois de muito reflectir, e apesar de saber o quanto movediças podem ser as areias que estou prestes a pisar, decidi que valia a pena o risco da exposição, perante a grandeza do assunto.
O tema, retratado no título que resolvi emprestar a este aglomerado de palavras, é tão só o que mais arrastou o pensamento e as vontades do bicho Homem ao longo dos séculos... a religião.
É tão ou tão pouco controverso, que não estando mais de meia dúzia de inócuas palavras escritas neste pequeno texto, já as mesmas provocavam uma acesa e animada discussão entre mim e um excelso interlocutor, que casualmente (ou talvez não), sobre o meu ombro as leu "na diagonal"!
O brilhantismo com que defendeu a sua dama, que rapidamente se transformou em moinho de vento, e depois em terrível demónio, ao sabor do interesse comum deste ou daquele assunto mais esotérico, leva-me quase a adiar pelo cansaço, a dissecação do tema a que me propus. Mas para não defraudar aqueles que, por me saberem sozinho e com tempo de sobra para a ilustre actividade literária (desde que determinada campainha não soe), esperam um produto palpável resultante desta noite, farei um pequeno esforço, que espero terminar antes que comece o período de "televendas" da grelha televisiva!
Falta-nos a água ou a omnipresença?
Assisti hoje com alguma letargia ao principal noticiário do canal estatal de Portugal, por três quartos de mim estarem longe (não muito), mas o suficiente para o desconforto ser imenso. Não pude, no entanto, deixar de focalizar toda a minha capacidade de processamento para o que, não muito longe da minha terra de eleição, se retratava, na forma de reportagem barata, sem o mais pequeno laivo de brilhantismo ou qualidade jornalística. Pedia-se, nada mais, nada menos, que a Deus, a divina concessão da queda de algumas moléculas de hidrogénio e oxigénio interligadas (já agora, pois pedir não custa, que viessem na proporção do dobro das primeiras em relação às segundas) por aquelas paragens. Como gostamos sempre de dar algo em troca, fazem-se novenas, organizam-se procissões e rezam-se missas, tantas quantas necessárias até que as ditas desabem em catadupa por esse firmamento abaixo.
Não me chocam os alicerces que as pessoas construam para anular o medo da morte, a sensação de inutilidade perante a ausência de Objectivo de vida, o receio do desconhecido, o sentimento de pertença a uma tribo/comunidade, ou tão somente o desejo de seguir na "carneirada". Não tenho sequer pretensões a influenciar quem quer que seja, pelo simples facto de não conseguir provar o que quer que seja (pois é... sobra a fé, dirão vocês), mas eu digo que devemos parar para pensar um pouco. Parece inocente este pedido genuíno das populações, numa altura de aflição. Longe de mim desdenhar dos sentimentos de cada um, mas, e a omnipresença? Será que Deus estaria descansado a olhar para o lado, que não viu que passou quase um ano desde que ordenou que a chuva caísse por estas terras? Não podia ser, pois é omnipresente. Concerteza não se esqueceria. Estará a castigar-nos pelos actos irreflectidos que temos ao longo da nossa existência diária? Não pode ser, pois pelo seu carácter infinitamente bom, seria incapaz de castigar o todo, pelos deslizes de uma pequena/grande parte. Ainda podem argumentar que é tudo consequência do livre arbítrio e da ausência de interferência que Deus nos concedeu. Pois, mas se assim é, que injustiças cometerá em conceder determinadas excepções àqueles que mais suplicarem?
Tudo isto para que conclusão?
Preferiria que, na minha terra, ao invés do tom monocórdico e previsível dos ritos religiosos, se escutassem nas assembleias municipais, nas assembleias de banco de jardim, ou mesmo nas assembleias de balcão, os tons polifónicos das discussões acerca das melhores medidas a tomar para minorar os tempos de agrura com que a natureza nos brindou.
Por um lado choramos (mal, porque gastamos água, ainda que ligeiramente salgada), mas não dispensamos a lavagem do nosso bem amado automóvel, que estará sempre mais reluzente que o do vizinho. Nem restringimos a rega dos jardins públicos ou privados, pois isso também já é um exagero que roça os limites do ridículo.
É certo que muitas medidas devem partir do poder central, mas é preciso vencer a inércia e tomar consciência da necessidade de agir também localmente, ao invés de cumprirmos o mito alentejano da eterna inactividade física e intelectual.
Agora pensam vocês, está este marmanjo aqui com esta conversa toda, queira Deus, não chova já amanhã, e acaba-se já a razão para este paleio todo. Ainda que assim fosse,teria servido para criar aquilo em que há muito deveríamos já ter pensado - planos de contingência. Planos que, ao invés de tentar remediar a desgraça inevitável, nos permitissem precaver contra uma situação potencialmente preocupante.
Teremos seca extrema? Em Abril haverá águas mil?
Nem a Maya sabe a resposta.
Entretanto, continuamos a rezar, na esperança de que tudo se resolverá pelo melhor.
Basta que Deus ouça as nossas preces... ou não.

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Entrada na Blogosfera

Quando, há algum tempo atrás (não especifico qualquer data por não querer passar por "ciberespacialmente" atrasado), li um artigo de jornal que falava da ploriferação dos "blogues" pessoais na comunidade de utilizadores da internet, confesso que subestimei o seu verdadeiro potencial. Pensei, na altura, que apenas quem, com mais ou menos frequência, se pronunciava na comunicação social sobre assuntos de indubitável interesse geral, encontraria espaço nestes novos serviços para um prolongamento da sua actividade literária, votando os mesmos a um nicho elitista de pequena ou média escala.
Não podia estar mais enganado!
Assisti, gradualmente, a uma explosão desenfreada de "novos-cronistas", uns mais dotados intelectualmente, outros com a sensibilidade de um tampo de madeira prensada, todos com liberdade plena de expressar o que bem entendessem, com a força e a perenidade que só a escrita pode imprimir! Fiquei particularmente desagradado com a quantidade de calúnias, obscenidades e impropérios de toda a espécie com que me deparei nestes espaços, repetidas uma e outra vez, testando ao limite a célebre reflexão de que uma mentira múltiplas vezes repetida, se poderia transformar em verdade.
Tudo isto me pôs a pensar na potencial colisão entre a liberdade de expressão de uns e a liberdade/integridade individual de outros, sem uma entidade reguladora (não lhe chamemos censura, porque ainda activa nos dias de hoje o complexo reptiliano a muita gente) que o possa arbitrar. Apesar de tudo, concluí que os prós superavam largamente os contras deste admirável mundo novo, e eis-me então, hoje, a aderir ao que espero não ser um impulso passageiro, mas o início de uma profícua relação com quem achar por bem partilhar comigo as aventuras e desventuras da humanidade no século vinte e um!
Um abraço,