terça-feira, novembro 20, 2007

112 Euros por Minuto

É hoje lançada mais uma campanha de sensibilização junto da sociedade portuguesa, desta vez para desincentivar o recurso ao número de emergência 112 por aquela franja da população que trabalha afincadamente para que todos os dias primeiros de Abril sejam um sucesso nesta nossa Nação.
É uma campanha Pro Bono, leio num reputado jornal diário, o que significa que todos os intervenientes colaborarão gratuitamente na iniciativa.
Quase me sentia impelido a aplaudir, não fora a sensação de desperdício que me enevoa o ecrã, e me impede de terminar a leitura do artigo noticioso com um sorriso positivista na face.
Quantas mais campanhas de sensibilização serão precisas para que percebamos que, por si só, elas resolvem coisa nenhuma. Que só suportadas, inicialmente, por medidas coersivas se conseguem os resultados pretendidos no curto prazo. Resultados esses passíveis de, gerada uma progressiva consciência grupal conseguida à custa de algumas multas/ processos / julgamentos / condenações mediáticas (aqui é que surge o verdadeiro serviço público de jornalismo), criar uma auto-regulação na sociedade, extinguindo o comportamento indesejado a médio prazo.
Parece-me que não percebemos ainda que o atraso face aos países mais desenvolvidos não é só económico. Tentamos copiar ideias e ideais, sem analisar a realidade da nossa população face aos restantes. Onde agora bastam apenas algumas campanhas de sensibilização, foram implementadas durante décadas medidas coersivas, algumas sobreviventes até ao presente, mantidas na sombra, mas vivas o suficiente para que a sociedade não degenere.
Escrevi há tempos um artigo cáustico em relação à sociedade americana, mas não tenho outra alternativa senão começar por ela para vos dar um exemplo de como se combate este tipo de problema. A história passa-se num hotel, detentor do mais estúpido sistema de gestão telefónica existente por aquelas bandas. Para se aceder a uma linha exterior, os utentes tinham somente que marcar os números 9, seguido do 1, e depois o número desejado. Nada de especial, não fora o infeliz acaso de estarmos a um dígito apenas de discar o número nacional de emergência médica. Claro está que, no meio de tanto estranho numa terra estranha (Belguinhas claro, que um tuga nunca é estranho em terra alguma...) lá houve quem por engano marcasse os tão famigerados três números, ainda que seguidos de mais dez para tentar falar para casa.
O que se passou em seguida foi deveras curioso... ou talvez não.
No espaço de tempo que medeia a percepção do erro, do reconhecimento da culpa, do desligar atabalhoado do telefone e de uma contagem de cinquenta para um em numeração romana, chegou a polícia local, que apenas ficou satisfeita após um sumário interrogatório e promessas de regeneração do personagem em questão.
Sendo certo que muitas das chamadas em solo nacional são efectuadas de telefones públicos, ainda assim creio que uma acção concertada com as polícias locais poderia quebrar a sensação de impunidade, sempre ela, a combater os princípios da moralidade social.
Lembro-me, há aproximadamente duas décadas atrás, da luta hercúlea que Portugal travou pelo uso do cinto de segurança. Bem me podem tentar convencer que foram as campanhas de sensibilização, por si só, que mudaram as mentalidades. A verdade é que foram os escudos a menos na carteira e a sensação de que a polícia realmente actuaria na presença deste tipo de transgressão, que inicialmente forçou a mudança. Naturalmente, com o passar do tempo, as campanhas de consciencialização fizeram o seu trabalho e é, com naturalidade, que hoje censuramos quem quer que o não use ou apregoe que o não faz.
E se dúvidas houver desta teoria, basta recordar uma recente campanha de prevenção rodoviária, onde um cidadão deficiente, vítima de um acidente de viação, tentava, com grande esforço, abotoar uma camisa, para demonstrar as consequências dos acidentes. Quanto tempo bastou para que, o que à partida parecia ter sido uma boa iniciativa, tivesse degenerado em mais uma adenda ao profícuo anedotário português?
Porquê?
Por ser uma campanha inconsequente, não suportada por medidas efectivas de combate activo aos desvios ao código da estrada. Por inócua, tornou-se ridícula. Quase como a sátira “fedorenta” ao comentário de Marcelo Rebelo de Sousa acerca do aborto.
- “É proíbido? Sim. E o que me acontece se o fizer? Nada!”
Bem sei, mais uma facada na teoria do bom selvagem... mas se realmente queremos homogeneizar a sociedade na assunção de bons valores morais, temos que adequar as medidas ao estágio de desenvolvimento que atravessamos, independentemente do que isso filosoficamente represente.
E para quem gosta de soluções e fica farto de teorizações que de pouco valem, proponho uma nova campanha, de sensibilização ou do que lhe quiserem chamar... cujo lema: 112 euros por minuto (o valor a pagar por cada brincadeira de mau gosto), mais despesas de envio (neste caso de todos os meios accionados para o efeito), acredito ser muito mais eficaz no redireccionamentos das chamadas destes brincalhões para as inúmeras linhas astrológico-eróticas existentes, estas sim, mais adequadas ao espírito da brincadeira.


“A Humanidade não é um estado a que se ascenda.
É uma dignidade que se conquista."
Jean Vercors


Um abraço,

Afonso Gaiolas
“The Jackal”

quarta-feira, outubro 10, 2007

Desculpa-nos, Madeleine

Não resisti.
Depois de tanta tinta gasta a dissecar o caso do desaparecimento da menina Madeleine, também eu me sinto no direito-obrigação de exteriorizar uma série de angústias que interiormente me consomem, acerca deste triste acontecimento.
Descansem as almas mais agitadas, que não é minha intenção participar na contagem de espingardas dos defensores de cada tese, teorias da conspiração e outras fantasias de quem, à falta de fenómenos meteorológicos para discutir, se entretem a brincar à criminologia.
Não estranhem, no entanto, que também eu tenha uma opinião formada, que apenas com os mais chegados compartilho, fruto da minha visão instintiva (animalesca, se lhe quiserem chamar) da natureza e dos acontecimentos, fielmente retratada nos devaneios do artigo Aos que olhando, se recusam a sentir, que tanto gosto de permanentemente tentar validar.
Todos somos capazes do melhor e do pior.
Por muito que esta afirmação choque as mais virginais mentes, ela não só é verdadeira, como facilmente constatável nas mais diversas relações pessoais, nas mais variadas faixas etárias, e sobretudo nas circunstâncias em que cada um, em cada momento, se encontra. Quantos dos que acesamente defendem a justiça dos tribunais, resisitiriam à tentação de temporariamente vestirem a pele de cirurgiões estéticos faciais, se se deparassem presencialmente com alguém responsável por um qualquer crime atentatório da integridade física ou psicológica de um filho seu?
Independentemente do julgamento que façamos do exemplo anteriormente referido (que não é de todo inocente), é obrigação de todos, no entanto, de crescer por dentro, na mesma proporção em que fisicamente vamos amadurecendo, para que, quando chegar a nossa vez de passarmos o legado humano a mais uma geração, ela se possa orgulhar do caminho percorrido pelos seus ancestrais.
Gostava de começar por analisar o exemplo que dei para começar a zurzir a luva branca (e que se lixem os falsos moralismos e a conversa mole, que começo a ficar farto da complacência perante a negligência e o laxismo, de quem decide, sem equacionar a sua preparação física e mental, assumir a maior das responsabilidades que os seus ombros podem carregar).
A protecção da família é o bem mais precioso e inalienável que possuímos, subjugando a nossa própria protecção, se necessário for. E isto deveria ser válido para qualquer caucasiano, da mesma maneira que para qualquer outro indivíduo ou grupo de indivíduos, agrupados ou não por variações do seu fenótipo. Mas aparentemente a realidade parece ser bem diferente...
Quem não se apercebeu que, ao conceber um filho, inicia uma série de concessões voluntárias na restrição da sua liberdade individual, talvez não esteja ainda preparado para o novo desfio que tem pela frente. E isto passa pela consciência de que toda uma série de prazeres mundanos, a existirem, serão naturalmente afectados. Muitas das lendárias jantaradas e saídas nocturnas, férias radicais, ócio matutino e vespertino domingueiro, entre outros desvarios próprios da repentina chegada à idade adulta, se tornam muito mais ocasionais, com o advento da descendência.
O mais importante a reter é que esta tomada de consciência não é dependente da formação académica dos progenitores, como se pode depreender da atitude de dois digníssimos licenciados em medicina.
Existem duas formas, constatadas por quem se desloca em qualquer meio social, do mais degradado ao mais monetariamente selectivo, de contornar ou renunciar ao enunciado no anterior parágrafo. Ambas condenáveis, ambas merecedoras da mais severa reprimenda moral por parte de toda a sociedade. Uns, irresponsáveis, optam por fazer-se acompanhar das crianças, em locais e horas não recomendáveis a menores. Outros, ainda mais irresponsáveis, prosseguem para os mesmos locais, às mesmas horas, deixando as crianças entregues a si próprias, trancadas ou não em habitações permanentes ou temporárias, esperançadas que Hipnos cumpra a sua função divina sem falhas. Delegando, enfim, na sorte, a responsabilidade da protecção dos seus entes queridos que só a si compete.
Mas mais repugnante que ser negligente e egoísta, é sê-lo sem escrúpulos nem respeito pela integridade física dos que o idolatram. Não há nada pior para uma criança que a traição dos próprios pais. É intolerável que se mediquem desnecessariamente as crianças, apenas para conforto dos progenitores, porque, à excepção dos placebos, não conheço quaisquer outros medicamentos que sejam totalmente inócuos, especialmente em corpos em crescimento. E, neste caso, serão tanto mais responsáveis os pais, quanto mais formação académica tiverem adquirido ao longo da sua vida.
A infelicidade desta criança inglesa, qualquer que tenha sido, merece que, pelo menos, a generalidade da população adulta reflicta sobre a atenção e importância que está a dar aos que tornam os nossos dias mais azuis, e que os que estão prestes a tomar a grande decisão, meditem na sua real preparação para tamanha responsabilidade.
Desculpa-nos Madeleine, por não termos, atempadamente, repreendido os teus pais!
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Afonso Gaiolas

terça-feira, outubro 02, 2007

Celas de chuto

Existem medidas difíceis. Existem medidas duras. Existem medidas draconianas. E existem... medidas estúpidas!
A visão do Estado e do conjunto de leis que o regem, a não ser utópica, orientada e orientadora no sentido do progresso social e moral, pode correr o risco de se tornar apenas paliativa da decadência reinante, ao invés de protectora da pureza espiritual... na demanda de uma sociedade um pouco menos imperfeita que a precedente.
Decidimos, em consciência grupal, que o aglomerado de substâncias a que vulgarmente denominamos drogas, nada traziam de benéfico para o grupo em que nos inserimos, apenas contribuindo para a alienação progressiva do indivíduo e a efémera conquista de um estatuto de "super-algo", a esfumar-se aos primeiros sinais de regeneração corporal.
Assumida esta decisão, é obrigação dos redactores das palavras basilares regedoras das regras de vivência em cada sociedade, a tradução desta vontade popular.
Poder-se-á argumentar que se pressente uma mudança progressiva de vontades, das dúvidas emergentes em estabelecer o que proibir e o que tolerar. Faça-se então um debate sério, uma consulta popular, o que for necessário para perceber a vontade da maioria, mas por favor, depois de tomadas as decisões, adequem-se as medidas para que elas sejam cumpridas.
Chega de subjectividade literária (lembrei-me do teu conselho, pai!).
Atormenta-me a alma que se combatam problemas com outros problemas.
Constatou-se a existência de um flagelo - a propagação galopante de doenças nos Estabelecimentos Estatais de Regeneração Moral (já que agora "embarcámos" na senda da pomposidade na descrição de cargos ou de locais, era útil aos mais distraídos que se identificassem então as prisões com o propósito último para o qual foram criadas), por via da partilha de artefactos artesanais de inserção de droga no organismo.
Não é necessário possuir um Q.I. de três dígitos para perceber que existe um problema a montante que, sendo resolvido, extingue o segundo. E que a tentativa de resolução do segundo, ignorando o primeiro, estabelece um precedente de reconhecimento de incapacidade muito perigoso, que fragiliza o Estado e os seus cidadãos.
Talvez seja casmurrice minha, mas gostaria que alguém me explicasse em que consiste a teoria da distribuição de "kits" de seringas nas prisões, precisamente o local onde se pretende que as pessoas se regenerem. E qual o propósito das ditas seringas? Já ouvi que para diminuir o número de contágios. Uma consequência da sua utilização, concordo, mas não o seu propósito... que é tão somente a injecção de droga no organismo. Gostava que alguém com responsabilidade decisória nesta matéria específica, reconhecesse publicamente (o que nas entrelinhas se lê nesta medida) a incompetência Estatal no controlo de entrada de substâncias ilícitas nas prisões, e a utilização do dinheiro de todos, não para combater este problema, mas para fornecer ferramentas de consumo àqueles que, ilegalmente, as conseguiram obter.
É espantoso.
Perante a possibilidade de regenerar um indivíduo viciado, anulamos a vantagem do controlo permanente, da abstinência forçada que potencie a vontade em seguir um programa de reabilitação, do apoio físico e psicológico... a favor do reconhecimento da falha em manter limpo o ambiente prisional, e do incentivo ao consumo, camuflado pelas bandeiras da saúde pública.
Qual é a mensagem que desejamos passar aos que, em virtude do seu desvio de comportamento do padrão social desejável, se encontram privados da liberdade?
Onde cabe o processo de (re)aprendizagem de vivência em sociedade e a regeneração física e espiritual, se o Estado mostra, neste "recinto escolar", que "se conseguirmos entrar para a sala de exame como uma cábula de tamanho liliputiano, o examinador prontamente nos disponibilizará uma lente aumentativa, para que consigamos adequadamente copiar, cumprindo assim o propósito de combater o flagelo da perda de acuidade visual dos alunos, por tamanho esforço de decifração de tão evoluído auxiliar de memória".
Ou a sofisticação da vestimenta do Rei não me permite vislumbrar para além do óbvio, ou então... ele vai mesmo nu!
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Afonso Gaiolas

terça-feira, julho 17, 2007

Umbigos, desígnios e ameaças

Precisamos urgentemente de um Inimigo Comum.
Digo-o com a mesma mágoa que tenho carregado dentro de mim, desde que reconheci, há alguns anos atrás, a inevitabilidade da consumação de tal afirmação.
E, acreditem, não creio que exista humilhação maior que o reconhecimento, a um conjunto de seres que se julgam racionais, inteligentes e superiores à média dos organismos que baseiam a sua existência nos átomos de carbono, da necessidade de uma muleta conflitual externa que ajude a sanar uma multitude de pequenos (grandes) conflitos internos.
Falso? Incoerente? Ilógico?
Quem, dos que pronunciaram estas três palavras, se voluntaria para envergar uma armadura e lutar ao lado de Afonso Henriques, na época em que o título honorífico "Dom" ainda não tinha sido inteiramente merecido, e me tente negar a responsabilidade do inimigo comum Mouro na agregação de ideais e vontades num conjunto necessariamente heterógeneo de pessoas, ainda sem identidade grupal como Nação. Ou na aliança de inimigos históricos no combate a invasores comuns sedentos de território. Ou uma miríade de outros exemplos por esse mundo fora, do mais simples ajuntamento e desentendimento tribal à mais complexa teia de Nações.
Há longos anos que intimamente sinto que a Humanidade precisa de um constrangimento comum, uma necessidade mundial, que compromenta a segurança de todos,- remediável -, se resolvida à escala global, mas suficientemente credível e imediata para que todos sintam a necessidade de um empenho total e incondicional para que o problema se solucione.
Só assim, na minha opinião, conseguiríamos que o foco de luz que actualmente apenas ilumina a zona do umbigo a alguns milhões de energúmenos, passasse a clarear a zona da caixa craniana e fizesse perceber que todos precisamos de respirar o mesmo ar e que todos inevitavelmente fechamos os olhos quando escurece.
Quando se aflora este assunto, imediatamente se eriçam os pelos dos tementes a entidades alienígenas agressoras (curiosa a necessidade de colocar algo com uma capacidade superior à nossa, se for esse o caso, como hostil). Mas não são do domínio da ficcção as potenciais rotas de colisão entre dois corpos celestes e, definitivamente do domínio da realidade imediata a degradação galopante do nosso cantinho azul.
E, analisando este caso específico, que demonstra um tremendo desrespeito pelas gerações actuais, mas especialmente pelas vindouras, podemos fazer uma extrapolação para justificar todos os ódios e conflitos remanescentes, latentes ou recrudescentes que a Humanidade carrega como eterno fardo.
Reconheço como válida a contestação à palavra eterno... mas de quantas gerações estamos a falar, quando tentamos encontrar o ponto em que todos os conflitos estejam sanados. Provavelmente necessitaremos de uma escalar milenar... e não me parece que disponhamos de tanto tempo assim para desperdiçar.
E tudo porque nos recusámos sempre a reconhecer a igualdade neste mundo. Porque uns se julgarão sempre maiores e melhores que outros, religiosa, cultural ou economicamente.
Porque será sempre preciso esperar pelo instante que antecede a morte, aquele suspiro que concentra toda a fragilidade da vida, para que eventualmente todos se reduzam à centelha a um sopro de se desvanecer. E mesmo aí, graças à maravilhosa ajuda da malfadada religião, por vezes ainda se consegue deturpar o óbvio e criar a ilusão de que, até depois de extintos, seremos melhores que os demais. Que ninguém tenha ilusões, nunca houve sequer a menor intenção (apesar do apregoado), de promover a igualdade entre os povos através da religião, e basta ver o carácter discriminatório do acesso à "eternidade" post-mortem, para concluir em que se baseiam os pretensos princípios morais.
Nada disto faz sentido, tudo parece bacoco, como bacoca nos parece hoje a adoração politeísta da Grécia Antiga. E, no entanto, que avançados eles eram no seu tempo...
Mas, se todos acordamos em reconhecer esta irracionalidade, porque tardam, por exemplo, as questões ambientais em tornar-se realmente um desígnio global.
A resposta está no foco de luz no umbigo.
Porque ainda há quem pense que a sua parcela de terra pode ficar imune à degradação, e que serão apenas os outros a arcar com as consequências dos erros de todos. Apenas no dia em que acordarmos com a catástrofe iminente a bater-nos à porta (e não será concerteza levemente), todos se unirão numa corrida desenfreada contra o relógio, em busca de uma solução global. Aí, mesmo que só por um instante, esquecer-se-ão as cores da epiderme, do cabelo, dos olhos, das escrituras sagradas, e todos farão apenas parte de um imenso grupo de seres, que partilham o mesmo ADN, cujas necessidades básicas são comuns, e que têm que actuar coordenadamente para assegurar a sobrevivência e simultaneamente o bem estar global como espécie.
É sem dúvida sombrio que tenha de defender a existência de uma ameaça comum que ajude a resolver os nossos problemas imediatos. E, acreditem, não passa um dia que não tente participar na resolução do problema que leve à aplicação de uma solução alternativa, que mostre a existência de um propósito maior que torne insignificantes as desavenças mesquinhas. Porque, estou convencido que é este vazio ideológico que gera o desnorte. Que deturpa as prioridades e acentua o valor do vil metal.
E, mais uma vez, a religião não fornece qualquer refúgio, pois não identifica qualquer objectivo para cada um de nós. Ao seu jeito humano, resolve apenas os problemazinhos de protecção, bem-estar e paternalismo, não fornecendo qualquer pista em relação à questão fulcral... a existencial!
O porquê da existência?
Reside aqui a segunda via para a resolução do nosso problema, aquela que sem dúvida corresponde ao graal da Humanidade, mas que, por agora, se encontra inatingível... a descoberta do Desígnio comum.
Porquê? Para quê?
Enquanto não conseguirmos derrubar o acento circunflexo, transformando a questão em parte de uma afirmação, precisaremos de um paliativo que resolva o nosso problema enquanto espécie, no imediato.
Porque, à medida que a tecnologia avança e se torna acessível a um cada vez maior número de indivíduos, mais perto estamos de fornecer instrumentos de destruição à escala planetária. E, mesmo que o pior dos cenários não se concretize, ver-nos-emos confrontados com o fantasma da teoria do espaço vital, quando tivermos que começar a lidar com uma população de dois dígitos a preceder os milhares de milhões de indivíduos.
E quanto fundo pode ser o nosso umbigo, quando nos recusamos a olhar para estes números globais, e nos mantemos preocupados com a penúria das taxas de natalidade locais.
É tempo de olhar, pensar e gerir o todo, com ou sem desígnio Maior... porque os problemas deixaram há muito de ser locais... e o bater das asas de um anjo assexuado, vai mesmo causar um ciclone na planície das virgens que esperam ansiosamente a chegada do seu chamuscado mártir.
Um abraço,
Afonso Gaiolas

segunda-feira, junho 25, 2007

Asas de frangos sem cabeça

Empanturrado numa orgia de americanices!
A expressão, que me fez recuar a caneta mais do que uma vez, reflecte contudo o sentimento que me preenche nesta estada, paradoxalmente não em terras do Tio Sam, mas no seu alter ego Canadá.
Que os referenciais europeus se esfumavam nas milhas náuticas necessárias para atravessar os dois continentes, não me restavam dúvidas, mas ainda assim, constatar in loco tamanha incompatibilidade cultural, confesso que nem uma sessão condensada de todos os documentários de Michael Moore me faria atenuar a estupefacção. É, contudo, também verdade que me encontro por detrás do sol poente da civilização ocidental, em pleno coração dos ex-domínios índios (ou primeiras Nações), como irónica e sarcasticamente por aqui gostam de os classificar. E como é deprimente presenciar a anulação de toda esta raça de seres humanos, incapazes de lidar com uma civilização que evoluiu (mecanicamente) demasiado depressa, e lhes ofereceu apenas o lado perverso das sociedades industrializadas, em troca do seu bem mais precioso... a identidade! A vulgaridade da presença, nas cidades mais movimentadas, de vítimas alcoolizadas, refugiadas na alienação oferecida pelas mais variadas substâncias psicotrópicas, viciadas nas demoníacas máquinas sugadoras de rendimentos ("slot machines", para os mais chegados), nitidamente deslocadas e incapazes de se encaixar na complexa teia social vigente, à qual, duvido, alguma vez tenham desejado pertencer, tudo isto representa a face visível deste problema centenário. Concordo que a solução não se encontra debaixo de um qualquer tapete, especialmente depois de definidas as fronteiras físicas e políticas de uma Nação, mas para um país possuidor de tantos quilómetros quadrados (inimaginável à luz do dimensionamento das Nações Europeias), penso que teria sido possível uma aproximação gradual que permitisse conjugar o melhor dos dois mundos. Verdade seja dita, o mesmo erro que cometemos em África!

(... pausa de alguns minutos!)

Confesso que estava a ser ingénuo.
O erro não está na aproximação repentina, mas nas personalidades responsáveis pelo contacto inicial e a sua intencionalidade. Infelizmente, em quase todos os lugares do globo, a mistura civilacional foi caracterizada pela ganância e má-fé dos pioneiros, tendo sido perpetrados um sem número de atrocidades que mancharam a História da Humanidade e que, no final, não mais fomentaram que o espezinhamento dos mais fracos, e não raras vezes o seu extermínio.
É estranho o sentido que esta crónica está a levar, totalmente díspar do tema a que inicialmente me propus. Será porventura a isto que Lobo Antunes se refere quando diz que a escrita se auto-impulsiona, num reflexo autónomo do nosso sub-consciente, que escapa totalmente ao nosso controlo.
A verdade é que este texto texto foi iniciado em consequência de uma declaração proferida por um insuspeito e conceituado médico (ou doutor, para os mais subservientes), que ouvi num dos programas, paradoxalmente leves, todos eles, disponíveis nos televisores destas paragens.
Não me sinto, no entanto, preparado para o abordar, por ter a mente toldada pelo sentimento de repulsa por tudo o que indirectamente me tentam impingir. Parece que o chip da padronização paira sobre mim, apenas aguardando um momento em que baixe a guarda, para que se aloje algures nas profundezas da minha massa cefálica.
Reconheço que provavelmente estarei a exagerar um pouco, correndo o risco de ser injusto por julgar o todo por algumas partes, mas não gosto do egoísmo subjacente à construção de um lar, cuja vida útil se esgota na da própria geração, sem qualquer sentimento de protecção ou legado aos que de si dependem.
Não gosto do exibicionismo e da ostentação de duzentos ou mais quilos de peso terreno, do desperdício pelo exagero, do desrespeito que isso representa pelos famintos dois terços do planeta e ainda assim, sublime ironia, da apresentação e confecção, como se da oitava maravilha do mundo se tratasse, no canal exclusivamente dedicado à comida (surpreendidos?), do mais requintado dos manjares, de fazer inveja ao mais virtuoso de entre os cozinheiros agraciados com três estrelas do guia Michelin... um enorme hambúrguer de quase um palmo de altura.
E vou-me abster obviamente de descrever a imagem do apresentador na fase de degustação de tamanha alarvidade.
Não gosto do artificionalismo dos cumprimentos conjugados com perguntas acerca do nosso estado emocional, das quais não esperam nem pretendem resposta, nem d0 aparente temor a Deus, condição sine qua non à aceitação pela sociedade normalizadora.
Não gosto dos sorrisos de plástico, das comidas de plástico, nem das vidas de plástico que aparentam ter, numa sociedade fabricante de autómatos, onde todos usam as mesmas expressões, pensam da mesma maneira e, acima de tudo, se recusam a aceitar que existe um mundo para além das estrelas e das riscas.
A confirmação deste facto está à distância da abertura do capot do automóvel de aluguer que puseram à nossa disposição, um "vulgaríssimo" aglomerado de oito êmbolos cuja disposição nos faz lembrar a antepenúltima letra do alfabeto português, e de uma voracidade no consumo de combustível apenas comparável aos quilos de dióxido de carbono emitidos para a atmosfera.
O ambiente, como o bem estar dos descendentes, aparentam ser irrelevantes numa escala de valores em que a locupletação de corpos e contas bancárias e um prato de asas de frango picantes ocupam os lugares cimeiros.
Vejo com tristeza e apreensão a fragilidade moral e o amorfismo social que se instalou e que, se malevolamente manipulados pelas elites, podem conduzir a um estado de hipnotismo global, que leve a considerar razoáveis ou mesmo defensáveis, as mais bizarras ideias e teorias, algumas delas, capazes de irremediavelmente fazer ruir o equilíbrio ainda restante neste tão mal estimado planeta.
A esperança, por seu lado, reside no simples acto de pensar para além do final de cada jornada, na coragem de ser mais do que uma simples formiga obreira, deixando emergir o melhor da natureza humana que há em cada um de nós, em prol de um bem maior... a consciência global.
Quanto aos devaneios da medicina e da biologia, resta esperar pelo próximo estado de alerta de reacção rápida, em terras, não do tio Sam, mas do Rei Alberto II.
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"Quando todos pensam da mesma forma é porque ninguém está a pensar."
Walter Lippman
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Até já,
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Afonso Gaiolas

domingo, abril 15, 2007

Pavão "Reloaded"

Não foi consensual a minha posição acerca do uso dos linhos, algodões e fibras de polyester.
Especialmente na comunidade feminina, mais vulnerável à exposição física. Penso ser necessário clarificar alguns dos pontos de vista, para tentar que pelo menos a consciencialização da necessidade prática da mudança de mentalidades, faça ricochete na caixa craniana dos que intelectualmente me apedrejam.
Não me quis alongar demasiado na anterior exposição, para não desvirtuar com detalhes técnicos menores, todo o conceito subjacente ao uso do fato integral. Primeiro erro grosseiro... Para as mulheres, a coloração ou padronização, nunca é um detalhe menor. Arrisco-me a dizer mesmo que é O detalhe... (Ok... vou parar com o ataque à classe... mas que me estava a divertir... o sorriso estampado na minha face não o consegue negar!)
Muito bem... a ideia é utilizar materiais que possuam a capacidade de reflectir todo o espectro cromático, capazes de reter e utilizar informação e um sistema central que coordene todo o processo. Nano-escalas... pois claro!
Tanta tecnologia para agradar... e com a certeza de não mais subestimar o factor decorativo, mas também ocultativo ou simulativo das vestes.
Traduzindo então a tecnologia por miúdos... imaginemos que caminho, numa noite de lua nova, na berma de uma estrada... que jeitaço me dá uma coloração laranja fluorescente. Já para os ornitólogos, que bom ter uma camuflagem específica para cada terreno, de modo a não amedontrar os objectos de estudo. Ou ainda, ao sabor da imaginação infantil, poder ser o Super-Homem, o Batman ou o Homem-Aranha (que, como todos sabem, é primo do Homem-Salsicha!). Por último, para quem gosta de se exprimir pela coloração ou padronização do que veste, imaginem as possibilidades virtualmente infinitas de todos poderem ser os seus próprios estilistas, e de se tornarem criadores, ao invés de escravos da moda... tudo ao alcance de uma ferramenta informática que possibilitasse a transferência de informação de e para o fato.
Agora, o lado verde! E não, não é um versão personalizada para o Sr. Paulo Bento. Refiro-me à vantagem ecológica do equilíbrio térmico corporal poder ser mantido sem o recurso a sistemas de aquecimento ou de refrigeração do ambiente, com todas as vantagens ecológicas que isso acarreta (diminuição das emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, poupança energética e preservação dos recursos não renováveis do nosso planeta). Concordam que seria um desperdício tentar aumentar a temperatura da água de um rio, para que o nível de conforto corporal de quem desejasse observar a fauna e flora subaquática pudesse ser mantido em valores aceitáveis, e não se corresse o risco de entrada em hipotermia. Foi muito mais simples inventar um fato de mergulho, actuando directamente no indivíduo, sem ser necessário alterar todo o meio envolvente. Parece lógico, não é?
Então, porque não fazer o mesmo com o ambiente gasoso, se faz tanto sentido fazê-lo com o líquido?
Fazendo mais ou menos sentido tudo o que acabei de dizer... não esqueçam nunca que foi sempre o raciocínio, o principal motor de desenvolvimento humano. Se todos nascermos, crescermos e morrermos sem questionar qualquer dos valores instituídos para cada época, a geração seguinte será rigorosamente igual à anterior, e entraremos numa perigosa espiral de estagnação. É fácil deixar para os "cientistas" a responsabilidade de abrir as portas da evolução. Nesse caso, como qualificar os restantes?...
Resignados, respondo eu!!
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Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito.
Albert Einstein
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Três dias para o nosso menino fazer cinco anos... quase um Homem!
Um beijo,
Afonso Gaiolas

sábado, abril 14, 2007

Penas de pavão ou pena dos pavões!

Tarde de sábado de alerta, num dia atípico para a tradição belga. Vinte e sete graus Celsius e um sol de fazer inveja à reputação mediterrânica de paraíso balnear.
Um pavão passeia-se, ora à esquerda, ora à direita do cinescópio, a dois metros da minha poltrona. É impossível ficar alheio à euforia colorida e à beleza natural dos seus adornos. Enfim... não encontraria melhor exemplo para definir a expressão... pavonear-se!
Baixo os olhos para me perder na imensa monotonia de verde-azeitona do meu fato, e não deixo de me sentir diminuído no índice potencial de captação de fêmeas.
Será que é apenas disso que se trata, no caso dos humanos? A discussão é mais profunda do que parece...
Já passei por todas as fases, da inocência da nudez natural, à adolescência tribal, pela acomodação à filosofia do vestir despreocupado e, por defeito de profissão, à uniformização pura e simples.
Sinto-me confortável, portanto, para qualificar os trapos que diariamente me (nos) cobrem.
Podia começar com uma frase do tipo, "No princípio era a nudez", e por aproximação à bíblia e à evangelização do mundo, tentar demonstrar que a religião teve um papel preponderante no envergonhamento global. Malditas tribos que ainda não se cobrem, que não conhecem o decoro e a discrição, e que não se ralam nada com isso... Imagino onde arderão de tanto pecado junto...
É óbvio que o pensamento é redutor, mas não retira ao credo religioso uma enorme fatia de responsabilidade no assunto. (Porque é um defeito e não uma virtude, que ninguém tenha dúvidas disso!)
Mas se o tiverem, tentem perceber um dia o ponto de vista do decoro e da discrição de quem vê o mundo pelo rendilhado da veste que representa um dos mais elevados graus de degradação da condição feminina.
Mas nós estamos tão avançados, dirão... que até o lencinho na cabeça já condenamos...
É só pousar a mão na consciência e perceber o nosso lugar na sequência de eventos, e o grau de culpabilização de cada um. E com que idade iniciamos as novas gerações nessa culpabilização.
Tudo depende, no fundo, de que lado recebemos a luz decomposta pelo prisma... e, mais importante que isso, de quem nos fornece a luz!
Mas, assumidas que estão as vestes que escondem, como naturalmente estarão as vestes que protegem... quero debruçar-me sobre as vestes que decoram.
o mundo da moda é de uma natureza desconcertante. Mas não tanto quanto a mentalidade vigente. Vivemos um tempo em que todos procuram o graal da individualidade, ainda que cada vez mais iguais a todos os demais. Só assim se explicam os obscenos monopólios de meia dúzia de marcas, que regem a consciência grupal do que é aceitável ser exibido a cada ano que passa.
Gostava de ultrapassar isto e focalizar-me no efeito protector, mas há um risinho interior que me impede. A galhofa de imaginar a maior parte das peças do nosso guarda-roupa é mais forte do que eu. Mea culpa também, porque também eu, de quando em vez, faço uso da tira de tecido opressora do pescoço, que dele pende ociosamente e que tanto uso pode ter no dia-a-dia de um ser humano, com um sem número de aplicações que agora não me consigo recordar...
E escuso de avançar para o vestuário feminino...
Se ao menos as pessoas fizessem o exercício de estilo de se colocarem na pele dos seus trinetos, em idade adulta, a admirar a figura dos trisavós, nas suas bizarras vestimentas...
Para além de todo este conceito subjectivo de beleza, o que defendo é que apontemos baterias ao alvo correcto, ao invés de desperdiçarmos potencial cerebral em ressuscitar, a cada 30 ou 40 anos, as roupas que então fizeram furor nas pistas de dança ou salões de baile.
É chegada então a hora da sujeição aos comentários jocosos dos criadores de moda, que pensarão "Olha-me este com a mania de imitar os livros de qualidade duvidosa de ficção científica". Curioso seria demonstrar quanta da ficção científica do passado se tornou na realidade actual (e que bem calçado que estou se me lembrar do senhor Leonardo di ser Piero, vindo da pequena localidade de Vinci, ou ainda de Júlio Verne, de um tempo onde já não era importante saber-se de onde se vinha).
Pois bem, o meu ideal de vestuário passa por uma única peça, integral, ajustável ao corpo como uma segunda camada epidérmica (entram em cena os apupos dos detractores da exposição da excessiva gordura corporal, especialmente se da mesma forem fiéis depositários), tão ou mais flexível que a versão orgânica, isotérmica e exteriormente estanque, mas permeável à transpiração e respiração cutânea, com um índice imaculado de protecção contra o espectro de radiação electromagnética que a nossa atmosfera começa a ter dificuldade em filtrar, contra a oferta de Prometeu aos Homens e contra as agressões potenciais de vértices afiados dos diversos elementos sólidos do nosso corpo celeste.
Seria deselegante se esquecesse a capacidade de suporte às partes do corpo mais sujeitas à acção impiedosa da gravidade e a facultação da invulgar característica que Grenouille, personagem maior da imaginação de Süskind, tentou sordidamente ocultar.
Impressionante caderno de encargos, bem sei, mas ainda assim não tenho a certeza de ser tão eficaz ou útil para o mar de doutores e engenheiros do nosso país como o fiel binómio fato-gravata numa tarde de Verão.
Todo este devaneio perde, no entanto, todo o sentido se descontextualizado do ideal subjacente, a tradução da mais básica das "verdades de La Palisse". Cada corpo é único e é essa individualidade que merece ser realçada, não uma qualquer demonstração de riqueza na forma de símbolo representativo de um criador de moda. Talvez assim a naturalidade voltasse lentamente a morar paredes meias com a beleza, e abandonássemos a idiotice de tentar concorrer com o protagonista animal da minha excitante tarde de sábado.
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Saudades,
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Afonso Gaiolas

domingo, abril 08, 2007

E nunca Querer sem Poder

Foi lançada recentemente uma campanha televisiva de promoção da marca Adidas, com uma frase a servir de porta-estandarte, que ecoa no meu subconsciente de cada vez que a leio, no final de cada sequência de imagens do anúncio.
"Impossible is nothing", do original em Inglês. Invencibilidade, como eu secretamente sempre gostei de lhe chamar.
Este sentimento, que não representa qualquer fenómeno competitivo com outros seres humanos, regeu a minha maneira de encarar o mundo durante quase trinta anos. Foi a época de ouro desta mole de células, no que à actividade física diz respeito. Não é fácil explicar este sentimento, a quem nunca a ele teve acesso. Penso que a melhor ilustração reside no exemplo, chegado hoje do rio Amazonas, atravessado em toda a sua extensão, a nado, por um ser humano, em pouco mais de dois meses. 99,99% dos espectadores do telejornal ficaram atónitos pela inverosimilhança de tal proeza. Mas 0,01% pensaram... quanto tempo disponível para treinar a cabeça e o corpo? Não se trata de fanfarronice... longe disso... apenas na tradução da frase do anúncio.
A invencibilidade que mencionei há pouco, reside na vitória permanente sobre o "eu" obscuro que povoa a nossa mente, e que nos impele a parar sempre que exigimos algum esforço maior sobre o nosso corpo; reside na sensação de tudo podermos, se assim o desejarmos.
Cometi algumas extravagâncias (aos olhos da sedentária maioria) durante estes anos, sem mediatismo nem visibilidade, por apenas querer demonstrar a validade desta teoria, pelo prazer inenarrável desta sensação.
Escrevo isto hoje... porque começo a sentir que a palavra que me serviu de armadura contra os mais rebuscados desafios me foge sob os pés, por me lembrar dos jogos de futebol sem relógio, das corridas sem destino, da apneia intemporal, das braçadas, do rolar das rodas dos patins e da bicicleta... sem cansaço. Mesmo quando me afastava de tudo isto por algum tempo, sabia que num estalar de dedos tudo voltaria ao normal, mas agora... já não tenho a certeza de o conseguir novamente.
Não é o corpo que me atraiçoa... sei que ainda tenho muitos bons anos de força pela frente... foi a cabeça que se esqueceu de quem manda em quem. E o demónio que expele o ácido láctico, sopra agora também a névoa que corrói a vontade de cumprir as três latinas palavras que reflectem o espírito olímpico. E é tão mais difícil derrotá-lo que à mais alta das escarpas...
Diz-se que as crianças têm muito vigor, que é impossível acompanhá-las nas brincadeiras, que não sabemos onde vão buscar tanta energia... mas a verdade é que à noite caem exaustas e, não raras vezes dizemos... "coitadinhos... estavam cansados... pudera, brincaram o dia todo".
Será que as campainhas não tocam quando ouvimos as palavras que nos saem da cavidade bucal? Não se ruborizam as faces de tanta bofetada de luva branca? Tanto mais, porque vindas de quem pouca consciência tem da complexidade do mundo!
A energia que possuímos é um bem esgotável, é verdade, mas com a idade deixamos de ter, paradoxalmente, consciência de quão fundo é o poço que a alberga. As crianças, por seu lado, nem se preocupam com isso, porque a vontade de brincar move a mais pesada das montanhas (embora se possa uma ou outra vez ouvir, mas por razões mais perversas... "mas assim o Alexandre fica cansado!").
Esta é uma batalha pessoal, que muitas pessoas perderam sem nunca sequer se terem apercebido de ter travado, e que se reflecte na maneira conformada de olhar o mundo, de um viver autómato, que embaraça se mencionado... e por isso negado pelo esvaziamento filosófico individual.
E eu, que me arvoro em campeão da astúcia no reconhecimento da subliminaridade do marketing e da publicidade, fico com vontade de comprar mais um par de sapatilhas!
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"Jamais o sol vê a sombra"
Leonardo da Vinci
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Afonso Gaiolas

segunda-feira, março 12, 2007

Crónicas do Árctico

Esta é a terceira experiência Norueguesa, mas a primeira acima do círculo polar Árctico. Não sei se reflexo da mística que o nome acarreta, mas a verdade é que todas as sensações e experiências parecem subjugadas à influência dessa palavra.
Vim por duas semanas. Vim sozinho, acompanhado por uma multidão. Vim para voar…
Recordo-me quando, ainda tenente, se constava que teríamos possivelmente exercícios na Noruega, e eu pensava… que longe, que frio… tudo me parecia tão distante e improvável. A adaptabilidade foi realmente a característica que nos fez chegarmos onde estamos hoje. Vendo a naturalidade com que tudo se processa, nas mais extremas condições, por pessoas que tomaram o sinal negativo da escala de Celsius por companheiro, tornamo-nos mais flexíveis e tornamos exequível o que parecia à partida muito para além dos limites do razoável.
O voo no Árctico é, para além de tudo o que poderá ser dito ou romanceado… extravagantemente bonito! Mas também aqui me parece jogar o factor de excepcionalidade nos olhos de quem avalia. Um viking aviador provavelmente dirá… “Pois, pois, montanhas, fiordes e glaciares… iguais aos que toda a vida galguei… para cima e para baixo, atrás de um qualquer alce mais teimoso que gentilmente me não quisesse ceder os seus galhos!”. Sendo certo que a monotonia pode levar à letargia dos sentidos, ilustrada na incapacidade da maioria residente em reconhecer a suprema beleza da melodiosa ondulação de uma seara, ao ritmo da brisa vespertina, no eterno instante que antecede o chamamento da nossa mãe para jantar, existem sensações que nunca passarão de moda no nosso Eu, quer seja a hipnotizante feitiçaria que o Sol nos oferece na sua (também nossa) aurora boreal, ou a fotografia que escolhemos para ambiente de fundo do nosso computador, se isso significar a nossa vida resumida num agregado de fotões em formato ISO400.
Mas, lamentando a decepção aos defensores dos “hollywoodescos” ases pelos ares, de sorriso e penteado preparados para a câmara, devidamente adornados pela máscara de oxigénio que fica muito bem, mas apenas para a fotografia… o voo militar do século XXI tornou-se de tal maneira complexo, que são pouquíssimas as ocasiões em que a expressão “deixa-me agora ir eu à janela um bocadinho” se possa verdadeiramente aplicar. Não me interpretem mal, podem e devem continuar a roer-se por dentro até ao fim dos vossos dias, porque o melhor emprego do mundo não é pertença do senhor Ronaldo de Assis Moreira ou mesmo do nosso “Hosé” Mourinho. É de um punhado de gente, mais ou menos normal (talvez com um ego ligeiramente dilatado), que pela dedicação, perfeccionismo e treino exaustivo tenta que a carga dissuasora que a imagem de tão forte oponente provoca, sirva para, silenciosamente, proteger a imensa família a que cada um pertence, sejam as suas cores verde e vermelha, ou uma mescla de quaisquer outras. Podem-se questionar os ideais mais ou menos belicistas de uma determinada nação, ou conjunto delas… mas não se questionem nunca os valores daqueles que juraram (no verdadeiro sentido da palavra, e não no sopro oco que se costuma hoje vãmente bradar) colocar os interesses do colectivo à frente da vontade individual, ainda que isso pudesse significar a perda do seu bem supremo…

Sinto que o frio enrijece tanto o corpo como espírito nestas latitudes. Apercebo-me que a rudeza, que não deve ser confundida com má educação (por ser a deles), se entranhou na sociedade, sendo vulgar que um viking, ao cruzar-se acidentalmente com um qualquer português, sempre na iminência de uma queda aparatosa na rua gelada, pela mesma razão que não se desculpará perante um poste se acidentalmente lhe der uma traulitada (estava-me mesmo a apetecer escrever esta palavra… tem qualquer coisa dos velhos tempos que me faz ter vontade de a pronunciar), assim continuará impávido e sereno se esbarrar com o aventureiro protagonista do musical “Disney on Ice”, no papel de Pateta.
Existe um encanto nesta agrestia, de casas isoladas na neve, de crianças a esquiar e pais sem receio de traumatismos cranianos, de pescadores nas águas geladas, em cascas de noz há muito caídas da árvore que as viu nascer, de aldeias em ilhas onde até o mais bravo dos animais polares teria receio de se estabelecer, de vontade de mostrar que a determinação é a maior das armas contra as adversidades de um clima que teimou, durante tantos séculos, em fustigar todos os recantos de todos os fiordes deste imenso lugar (soa por aí que começa agora a mudar...).
A verdade, no entanto, é que, quanto mais viajamos, quanto mais nos deslumbramos perante o desmesuradamente belo mundo em que vivemos, mais nos apercebemos da excepcionalidade das nossas origens, dos lugares a que nos acostumámos apelidar de nossos, e sobretudo das pessoas de quem dependemos e que dependem de nós, daqueles que sabemos que nos amam sem nunca precisarem de o ter dito, e daqueles que amamos sem nunca o termos chegado a anunciar!

Para ti, avó,

Afonso