sábado, junho 01, 2013

Beijo de arrependimento

Revendo o clássico de 1998 "Meet Joe Black", esbarrei com a egnimática frase de Anthony Hopkins, a minutos de ser levado pelo anjo da morte, enquanto se despede de sua filha:
"Sem remorsos!", que simultaneamente quererá dizer sem ressentimentos, que do mesmo modo poderá significar sem arrependimentos...
E conclui... verbalizando a constatação da beleza de tão simples sentimento.
Este diálogo de cinco emotivos segundos força-nos a pensar que podemos e devemos fazer jus à capacidade cognitiva humana, e esforçarmo-nos por aprender com os erros, mas sobretudo com os ensinamentos de todos os outros que nos precederam e nos tornaram um pouco melhores que si próprios.
Mas de que modo poderemos anular o arrependimento de tantos milhares de milhões de potenciais atos e ações falhadas das nossas vidas?
De tantas horas de tantos dias de tantos anos de decisões, indecisões, conquistas e perdas, venturas e desventuras. Como não cometer erros dos quais nos arrependamos no dia do balanço final, conscientes de os termos assim tomado ou inadvertidos, fruto de infeliz ingenuidade temporal?
A religião é, paradoxalmente, a chave desta aparente impossibilidade.
Existe um caminho fácil e existe O caminho.
Ao invés do expectavelmente óbvio, ao longo dos anos em que fui arrumando as minhas ideias e convicções, percebi que o caminho da religião era afinal o caminho fácil.
E passo a explicar (repetição da jogada, pois já o fiz em artigo anterior).
As pessoas são naturalmente instintivas, e isso leva-as a condicionar as suas ações, face a desafios de elevado stresse ou que façam perigar a sua sobrevivência,  por atos que parecem ruins e perversos à luz do padrão moral que a sociedade pretendeu, ao longo de sucessivas gerações, implementar.
O instinto tem outra característica peculiar. Tal como um curso de água procurará o percurso mais fácil que o leve ao objetivo final - um abraço com cheiro a maresia, também o ser humano procurará naturalmente a maneira menos penosa que o mantenha vivo e o faça prosperar. Ainda que se cometam as maiores atrocidades físicas e psicológicas pelo caminho.
Quer isto dizer que o Homem é intrinsecamente mau?
Sob este ponto de vista, Sim!
Fruto deste reconhecimento, foi criado pela elite intelectual, há alguns milénios atrás, um conceito que sobreviveu ao teste do desvanecimento temporal... a ideia de um ente omnipotente e omnipresente que tudo controla e tudo julga, e cujo propósito último foi forjar um conceito de juízo final face aos nossos atos em vida, em jeito de balanço moral da existência de cada um.
Fácil, pois, será forçar alguém a ser bom, se o ameaçarmos com uma eternidade de labaredas, caso se desvie do padrão pré-estabelecido de sã convivência e moralidade social.
Difícil... difícil é decidir continuar a ser bom, ainda que ninguém, no final, teça um juízo qualitativo do seu padrão de comportamento em vida.
Difícil é contrariar o imobilismo, o individualismo, o narcisismo... e perceber que a maior recompensa não é, no final, sentar-se à direita de ninguém, mas permanecer como uma doce memória em todos quantos pôde tocar, por umas horas, por uns dias, por uns anos... ou toda uma vida.
Arrependimento...
Encare a vida como uma missão, e o arrependimento não terá lugar no seu léxico corrente.
Não se desvie da sua missão, não deixe que nada nem ninguém o desviem nunca da sua missão de vida.
Renove a cada dia o seu comprometimento para que a missão jamais possa ficar comprometida.
Ser mau e deixar correr a natureza impiedosa que flui dentro de si pode eventualmente trazer-lhe um prazer imediato, mas a bondade trar-lhe-á uma felicidade e bem-estar interior perenes, que o preencherão para  o resto da sua vida.
Não se arrisque nunca a passar pela angústia de temer que a expressão do seu eu se tenha sobreposto ao amor pelos seus, qual matriarca em Quinze pontos na Alma.
Não tenha que se arrepender, no final, dos sorrisos que não ofereceu, das brincadeiras que não brincou, do amor que não partilhou, das perigosas aventuras que não viveu, das árvores que não plantou, dos livros que não escreveu... e dos filhos que não gerou.
E ganhe consciência de que a soma de todos os seus atos foi afinal o que o construiu como pessoa e lhe conferirá mais ou menos dignidade e honra, no dia e hora em que o entenderem evocar.
Ah... e caso não chegue a implicitamente perceber... o dinheiro nunca chegou a ocupar lugar nesta discussão.
Tenha-o na proporção suficiente para que nele não pense.
Encare-o como um meio de satisfazer a base da sua pirâmide das necessidades.
Não permita que ele ascenda, por si só, ao topo da pirâmide, pois esse será o dia do qual se arrependerá para o resto da sua vida.
Abdicará, para o gerar e gerir, dos sorrisos, das brincadeiras, do amor, das aventuras, das árvores, dos livros... e dos filhos.
No final, sozinho e inundado de notas, forrará o seu caixão, onde sem escolta será ocultado, sete palmos debaixo de terra, da vista de todos quantos em vida menosprezou.
Os melhores e maiores prazeres não custam um cêntimo... e condenados estaremos como espécie se um dia deixarmos que passem a custar.
Faça contas a quanto pagou pelo amor que os seus pais incondicionalmente toda a vida lhe entregaram, fazendo-o sentir o melhor e mais precioso ser de todos os seis mil milhões que povoavam, à data, este planeta, de quanto pagou pela lealdade à prova de tudo que os seus irmãos lhe dedicaram todos os minutos da sua vida, de quanto pagou para que o seu coração batesse descompassadamente da primeira vez que deu a mão à mulher que ama, de quanto pagou pelas borboletas que sentiu voarem descontroladamente no seu estômago, de cada vez que com ela se encontrou enquanto namoravam, de quanto pagou pelo beijo na noite em que lhe pediu que caminhassem juntos para o resto da vida, de quanto pagou pelo vislumbre dos primeiros passos e conquistas de seus filhos, de quanto pagou pelo sorriso nos seus olhos de cada vez que gritaram "o pai chegou", de quanto pagou por encontros e reencontros e conversas e tertúlias e passeios e mergulhos e corridas e dormidas e vento na sua cara e chuva no seu corpo e neve nos seus ossos e lambidelas nas suas mãos e latidos de satisfação e chilrear matinal e coaxar crepuscular e quanto pagou por todos os raios de sol que o aqueceram e o iluminaram por fora e por dentro, de quanto pagou por tudo isto e por tudo o mais que lhe encheu a alma de sólida confiança num futuro glorioso para a humanidade... e que lhe mostrou afinal que não há mundo como o nosso nem país como o nosso nem família como a nossa, nem identidade como a que só a nós nos pertence.
Parece-lhe complicado?
Pelo contrário... tudo, tudo na vida é extraordinariamente simples.
Torne-se simples... e naturalmente, de forma absoluta, Será!


Afonso Gaiolas

quarta-feira, fevereiro 20, 2013

Mais viver sem viver mais

Imagina a esperança média de vida atingir os noventa anos de idade?
Fá-lo-ia feliz?
Tudo quanto possa representar a protelação do fim da existência soará sempre à melhor das notícias.
O problema é que enunciar o número noventa também faz ecoar as palavras velhice, vulnerabilidade, debilidade e caducidade.
Devemos então apontar baterias à otimização do potencial energético do ser humano até final da sua existência?
Sem dúvida.
Mas o verdadeiro segredo de mais viver reside em algo mais simples de imaginar, incrivelmente complicado de concretizar, e que em nada tem, paradoxalmente, a ver com a longevidade.
Dormiu bem a noite passada?
Se a resposta tiver sido afirmativa, é provável que oito horas tenha sido o tempo dispendido nesta função orgânica. E oito horas equivalem a um terço das vinte e quatro que constituem uma rotação terrena. E um terço será também o tempo dispendido, ao longo da sua vida (porque todas as noites, queirando ou não, dormirá) em funções regenerativas inconscientes, inconsciente do mundo que o rodeia, desperdiçando tempo precioso, em todas as idades, incluindo as de ouro a nível energético e cerebral!
Em estado de vigília contínua, proporcionalmente, noventa anos equivaleriam à vivência de cento e vinte segundo os padrões atuais. E isto sim, seria um salto evolutivo sem comparação na história da humanidade, superior mesmo ao bípedismo ou à manipulação consciente do fogo e da roda.
Antes do devaneio da eliminação do sono como o conhecemos, é necessário perceber realmente para que serve esta muleta biológica.
A resposta é tão ambígua quanto a natureza da pergunta o pode ser.
Estou convicto que algumas das teorias prevalecentes nos podem encaminhar para uma solução que se aproxime dos propósitos originais da arquitetura biológica subjacente a este ato. No entanto, a falta de certezas científicas deixa-nos na frágil posição de especuladores intelectuais na busca de uma razão para algo que, aparentemente, parece uma falha da natureza.
Como decerto todos concordamos que a natureza, tendencialmente, raras vezes se engana e ainda menos vezes lhe restam quaisquer dúvidas, resta-nos alvitrar alguns propósitos e/ou funções que sejam realmente necessários executar durante o sono, tão importantes que se sobreponham à necessidade de permanente alerta quando se joga o perigoso jogo de predadores e presas.
A teoria da inatividade, que se mescla com a ideia de conservação de energia espelhada na hibernação invernal, pode ser válida mas claramente insuficiente.
A teoria regenerativa pode, é certo, impulsionar as duas anteriores para um patamar de quase imprescindibilidade, mas é sem dúvida a teoria da elasticidade cerebral que acolhe mais adeptos, quando se trata do período de sono dos seres humanos.
Milhares de anos de evolução levaram a que o peso dado a cada uma das funções agora descritas tenha naturalmente variado, sempre com o propósito de melhorar a espécie e proporcionar-lhe mais oportunidades de sucesso e sobrevivência.
Será chegada a hora de equacionarmos a supressão de tão importante função biológica?
Talvez... suspiro, pensando que deveria escrever o quanto atrasados ainda estamos na escala de Kardashev... consciente de que não nos restam mais do que alguns, poucos, milhares de milhões de anos para resolvermos o nosso problema existencial...
Regressando ao cérebro, que será sempre a chave de todas as soluções...
A teoria da inatividade reclama para si um ideal de proteção intrínseca que advém do facto da diminuição de exposição aos perigos noturnos a um ser não adaptado à perda abrupta de luminosidade. Os seres humanos há muito eliminaram esta necessidade, quer por se terem (a pulso) colocado no topo da pirâmide que representa a cadeia alimentar, quer por terem dominado a arte de controlar o espectro eletromagnético situado entre a radiação infravermelha e ultravioleta.
A teoria da conservação de energia também deixou de ser um fator limitativo, a partir do momento em que os seres humanos deixaram de depender de fontes naturais diretas para a aquisição dos produtos energéticos que compensem as suas perdas diárias. Em qualquer ambiente, do mais inóspito ao mais benevolente, quer o vestuário, quer a alimentação, ambos à distância de um armário ou de uma prateleira, trouxeram um conforto inexcedível à humanidade, pelo garante da saciação sem esforço destas necessidades básicas.
Restam-nos as as duas funções mais complexas.
A função regenerativa, explicada cientificamente, parece ser exponenciada no período de letargia noturno, altura em que o combate aos radicais livres produzidos durante o dia pelas células na conversão de nutrientes em energia atinge o seu auge. Parece-me que, no entanto, se adequadamente manipuladas, tanto as células que geram este subproduto, como as enzimas que o combatem, podem ver a sua eficácia multiplicada, tornando desnecessário o período de repouso contínuo a que todos os mamíferos parecem estar sujeitos, após uma jornada diária de sobrevivência e prosperação.
Quanto à teoria da elasticidade cerebral, que faz reclamar para o período noturno a responsabilidade de edificação e consolidação das sinapses entre neurónios, em conjunto responsáveis pela memorização e apreensão de conhecimentos, não restam dúvidas acerca da sua imprescindibilidade. O processo de transformação da memória volátil em impressões definitivas contribui decisivamente para que, diariamente, todos os seres humanos se tornem melhores e mais capazes, individual e coletivamene, no caminho atribulado, enquanto espécie priveligiada, para a geração de uma consciência global que contribua para contrariar o fatal destino que a instabilidade do vácuo (grande amigo, este pequenito bosão de Higgs...) nos parece querer traçar.
Como contornar então esta necessidade?
A resposta parece estar naquele ser marinho que, em inteligência, muito pouco fica a dever a muitos seres humanos.
Este mamífero (irracional... porque racional só o esbelto humanóide) que alguém um dia já chamou "bolfinho", conseguiu treinar o seu cérebro para que, alternadamente, diferentes áreas pudessem entrar em modo de consolidação inconsciente, enquanto outras permanecem em plena atividade. Esta brilhante adaptação permite-lhe uma permanente vigília e, simultaneamente, a realização das mesmas tarefas que seriam supostas acontecer no período de inconsciência cerebral típico do sono.
Sendo certo que, provavelmente, esta adaptação apenas se deveu à necessidade deste mamífero tornar consciente o ato de respirar (que nos mamíferos terrestres placidamente se mantém inconsciente), fornece-nos, no entanto, uma pista preciosa no caminho da resolução deste problema humano de inatividade.
Imagina-se agora a sonhar acordado?
O fascínio pelo futuro só o é enquanto mantivermos a capacidade de imaginar para além do óbvio, evoluir para além do expectável e quebrar dogmas que aparentavam ser, temporal e espacialmente, imutáveis.
De pequenos passos para um homem, em gigantescos saltos evolutivos para a Humanidade (honrando a maior gaffe verbal da História)... rumo ao sexto tipo da escala civilizacional de Galantai.

Todos os homens que não sabem o que hão-de fazer desta vida
desejam outra, que nunca acabe.
Anatole France

Um abraço,

Afonso Gaiolas

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Previna... para não ter que remediar

Este texto não pretende induzir qualquer pessoa a tomar decisões que contrariem a sua natureza interior, nem tão pouco ferir os postulados dos colégios de medicina das civilizações ocidentais.
Sinto-me forçado a esta introdução para evitar mal-entendidos e especulações acerca dos reais intentos deste ensaio.
As implicações das minhas convicções, estou absolutamente consciente deste facto, estendem-se para além das consequências pessoais que possam advir do meu processo de tomada de decisão. Os que de mim dependem, os que em mim confiam, acreditam que não menos que o melhor que sou e sei será incondicionalmente entregue, durante todo o seu complexo processo de crescimento, para que o melhor dos adultos suceda à melhor das crianças.
Qual deve ser o papel da medicina nas nossas vidas?
Porque razão deixámos que a perspetiva economicista da prevenção se sobrepusesse à melhor das soluções ao nosso dispor, que já agora, lhe custam apenas os minutos de introspeção que ao longo da vida utilizar, e que se resumem em escutar o nosso eu interior e tomar ações preventivas sensatas, que em nada necessitam estar coladas a um gabinete hospitalar ou de qualquer clínica de medicina privada.
Vamos começar pela dentição.
É verdade que os genes desempenham um papel importantíssimo neste assunto.
Que provavelmente os africanos terão sido mais bafejados pela sorte que os caucasianos no jogo da roleta do ADN.
Mas por que razão são as civilizações mais avançadas as mais necessitadas de cuidados médicos ortodônticos?
Porque decidimos ignorar o que a nossa razão interior nos quis transmitir.
Porque em cada crânio humano passou a estar uma potencial fonte de rendimento, em consultas preventivas e tratamentos paliativos da auto-destruição a que nos vamos lentamente dedicando ao longo da vida.
Pode uma alimentação adequada e cuidados básicos de higiene diários serem suficientes para que os dentes se mantenham incólumes ao longo da vida útil em que deles é suposto necessitarmos?
Não só podem como, estou convicto, evita o contínuo fragilizar da dentição que resulta das "limpezas", branqueamentos e outros tratamentos tão em voga nos dias que correm, de cada vez que visita o seu dentista de eleição, brasileiro ou luso, que só o sotaque os distinguirá.
São os dentistas necessários ou supérfluos?
Absolutamente essenciais, em caso de tratamentos hospitalares, curiosamente nos locais onde não existem, ou são espécie em vias de extinção, no tão mal amado Serviço Nacional de Saúde.
Onde se insere neste cenário a visita semestral (que passará a trimestral quando se aperceberem que duplicarão os lucros com esta medida) ao dentista, recomendada pela ordem dos médicos desta especialidade?
Bem, se o seu objetivo de vida é alimentar esta rede privada de cuidados de saúde que lhe mastigarão a carteira até que o seu subsistema de saúde / seguro / ou o nosso ministério da saúde colapsem, faça favor de se colocar na fila de carneiros que apenas nos dias ímpares dos meses pares dos anos bissextos pensam pela sua cabeça.
Perceberá, no final da vida, com uma prótese integral, ou dentes implantados que lhe custaram vários anos de salário, que a seu lado convivem pessoas com a dentição original completa, sem mais dispêndio de tempo nem de dinheiro para que tal sucedesse, que não o da mais elementar saúde oral caseira!
Falo com a propriedade de quem, quase ao romper da ternura dos quarenta, há mais de vinte anos não efetua qualquer tratamento ou visita de caráter paliativo a um consultório médico desta especialidade, e permanece com a sua dentição original (três dezenas e duas unidades)... intocada.
A medicina é talvez a conquista mais importante dos seres humanos nos dois últimos séculos.
(Também) graças a ela, duplicámos a nossa esperança média de vida à nascença.
Multiplicámos em muito mais que isso a nossa qualidade de vida, especialmente nos períodos de maior debilidade enquanto seres vivos.
Não posso concordar, no entanto, que seja usada a arma da insegurança que deriva da ignorância médica, para que a população seja inserida numa rede de dependência médica que, não raras vezes à custa dos efeitos secundários que geram um ciclo vicioso de necessidades continuadas, se vê espoliada da sua saúde física, financeira e mental para o resto das suas vidas.
Deixemos aos médicos a função para a qual estão destinados (Médico - o que cura um mal-estar físico ou moral), remuneremo-los na proporção da educação esforçada que dedicaram à causa médica (nunca em função do receio que possam incutir com a ameaça latente de diminuição da qualidade ou protelação dos atos médicos... que toda a gente mais tarde ou mais cedo necessitará...), mas não cedamos à voracidade capitalista dos que esqueceram ou nunca souberam o que representa o juramento que originalmente Hipócrates imortalizou.

Afonso Gaiolas

sexta-feira, janeiro 11, 2013

Quem quer ser milionário?

Já deu por si a praguejar que pouca sorte ter escolhido a fila mais lenta do supermercado?
Ou a faixa mais lenta de uma via rápida lotada de tráfego automóvel?
Ou será que  inconscientemente valoriza mais os aspetos negativos de uma situação que lhe é desconfortável ou desfavorável à partida, menosprezando as conquistas ou aspetos positivos da mesma situação?
A psique humana é terrivelmente tendenciosa, e não raras vezes nos tolda a razão, levando-nos a ações das quais a própria razão se envergonharia.
Repudia certamente todos os casos de vício compulsivo em jogos de sorte e azar, em casos não raras vezes causadores de destruição pessoal e familiar, numa espiral destruidora que rivaliza com o mais impetuoso dos furacões.
Repudia... mas joga no euromilhões todas as semanas.
Repudia... mas lá raspa religiosamente o papelinho sempre que vai ao quiosque, disfarçada ou propositadamente para esse único fim.
Inócuo!
Que comparação ridícula!
Sem pés nem cabeça!
Pois...
O imposto dos pobres, digo eu a quem me quiser ouvir!
Desemprego a galopar para a segunda dezena percentual, impostos a aproveitar a boleia do galope, evolução dos salários em galope inverso... mas mil setecentos e vinte e sete milhões de euros gastos, apenas nos jogos sob a alçada da Santa casa da Misericórdia de Lisboa, nos mesmos 365 dias em que estes cavalos de corrida todos estiveram à solta.
Leu corretamente, mil setecentos e vinte sete milhões de euros.
Quer agora incluir o jogo tradicional de casino, ou as apostas futebolísticas e jogos de cartas on-line?
Decidi que não, que o número isolado dos chamados jogos sociais é suficientemente brutal.
Até porque o perfil do jogador de casino ou de cartas on-line é outro, mais sombrio e distante da adjetivação de pobre (conquanto o polvo o não tenha ainda envolvido nos seus tentáculos).
São, portanto, mil setecentos e vinte e sete milhões de euros excedentários no orçamento das famílias, as mesmas que argumentam não ter dinheiro para dar de comer aos filhos.
Mas dois euros por semana nada significam, argumentam os viciados de pequeno calibre, que iguais são na proporção do vício, se comparados com os grandes apostadores com rendimentos anuais grandes na proporção do grande gasto.
Significam pois muito.
Doze euros mensais (um euromilhões e uma raspadinha jogados por semana) representam dois e meio por cento do total da remuneração de um trabalhador que aufira o salário mínimo nacional.
O anúncio de um corte de dois e meio por cento nos salários dos trabalhadores representa duas avenidas e meia da liberdade de protestantes a vociferarem contra os sete mares, os sete ventos e os sete ministros que estiverem mais à mão.
Doze euros representam quase seis quilos de carne comprada em promoção no seu supermercado de referência.
Representam quase vinte quilos de arroz ou de massa na despensa de sua casa.
Na despensa da mesma casa onde os filhos vão para a escola com o pequeno almoço por tomar...
Pare para pensar.
Andou na escola... muito... pouco tempo... passeou os livros... ou deixou que os livros o passeassem...
Eu ajudo-o...
Não se assuste com a fórmula, só nos vai interessar mesmo o número final.

P(A) = 50!/5!/(50-5)! = 2,118,760
Calculada a probabilidade de acertar 5 números em 50 possíveis.

P(B) = 11!/2!/(11-2)! = 55
Calculada a probabilidade de acertar 2 estrelas em 11 possíveis

P(A) * P(B) = 2,118,760 * 55 = 116,531,800
Eis a probabilidade de acertar no Euromilhões!

É mesmo... 1 hipótese em 116531800.
Ainda assim, a voz interna que comanda o jogador diz... mas esse um posso ser eu.
Pois é, mas então não saia de casa... pois uma em cada setecentas mil são as hipóteses de ser atingido por um raio.
Já se recorda agora do início deste artigo?
Vou repetir, para lhe evitar o enfado de percorrer de novo os parágrafos em busca da resposta.
"Ou será que inconscientemente valoriza mais os aspetos negativos de uma situação que lhe é desconfortável ou desfavorável à partida, menosprezando as conquistas ou aspetos positivos da mesma situação?"
Esta é a frase que o compele a sair de casa... pois não hei-de ser eu um dos 700000 a acrescentar carbonizado ao rol de alcunhas que foi adquirindo ao longo da vida.
Mas o mais importante é que o inverso desta frase o compele a continuar a desbaratar os seus escassos recursos financeiros no jogo, pois uma vez que a situação lhe é muito confortável e favorável (o sonho de imaginar o que faria com tantos milhões de euros, ou o prazer das palavras de irónica despedida que diria ao seu patrão no ato da desdenhosa renúncia à escravidão operária), o fará valorizar muito mais as conquistas e os aspetos positivos do que as perdas consecutivas e acumuladas que nunca reconhecerá ou menosprezará.
Resta-me pois desmontar o último dos argumentos dos jogadores...
Que o sonho e a imaginação da vida milionária ajudam a passar os dias de miséria física e moral, num mundo que não se lembra nem tão pouco se importa com a exploração dos mais pobres?
A estes... apenas uma pergunta...
Aceitaria tomar o comprimido azul, ao invés do vermelho?


 

Menino: Não tente dobrar a colher. Não vai ser possível.
Em vez disso, tente apenas perceber a verdade.
Neo: Que verdade?
Menino: Que a colher não existe.
Neo: A colher não existe?
Menino: Então verá que não é a colher que se dobra, apenas você.

THE MATRIX


Afonso Gaiolas