segunda-feira, outubro 13, 2008

Ser e não ser!

Num dos dias da semana que agora findou, entretive-me, ao serão, com um filme denominado "O terceiro Passo", "The Prestige" se preferirmos o título original na língua anglo-saxónica. De valor cinéfilo discutível, assume-se, no entanto, incontornável na subtileza do afloramento à mais lenta das agonias humanas... o tormento da incerteza da (in)existência de algo mais que a combinação extremamente cuidada de átomos que nos individualizam e a que gostamos de carinhosamente chamar alma!
Não creio que o escritor tivesse uma intenção consciente de filosofar sobre tão complexo tema mas, curiosamente, ajustou-se na perfeição ao reacendimento de uma discussão recente que mantive com um dos companheiros de fim-de-semana de alerta.
Se hipoteticamente, fosse possível duplicar o nosso ser, seriam os dois resultados exactamente iguais?
Em caso de resposta afirmativa, seria angustiante se a nossa cópia nos apontasse uma arma com o intuito de nos eliminar?
Quem me conhece em profundidade, ou se deteve na leitura de alguns dos artigos anteriores, facilmente conclui que o meu nível de cepticismo em relação a tudo o que roce o esoterismo, é mais elevado do que a ânsia da imortalidade poderia à partida fazer supor. Não existe, no entanto, qualquer paradoxo nesta constatação. Trata-se, pura e simplesmente, da busca de uma solução racional e palpável, ao invés da cedência gratuita à simplista e cómoda muleta religiosa.
Pois bem, muito sucintamente, o filme/livro deslinda o segredo da ilusão da transportação de um conceituado mágico, pelo uso de uma máquina de duplicação. Acontece que, obviamente, um dos dois seres resultantes terá de ser subrepticiamente anulado para que a ilusão se funda com a realidade e a apoteose seja total. E, no caso desta ilusão na forma tentada, seria o original a sacrificar-se em nome da credibilidade global de prestidigitador.
Abstraindo-me da obra cinéfila, tentando apenas que o espírito de predição futurista assuma as rédeas do pensamento, concluo que sim. Será possível, pelo menos em teoria que, no acto de duplicação perfeita de um ser, a cópia seja exactamente igual ao original (embora apenas no instante da concepção, em virtude da interacção diferenciada com o mundo que os dois seres imediatamente iniciariam logo após esse sopro original). Mas, nesse instante mágico, todas as memórias, capacidade de raciocínio, convicções e valores, seriam exactamente os mesmos, cópia e original, original e cópia, que a ordem absolutamente irrelevante seria.
E, assim sendo, chegamos ao paradoxo da frase que dá titulo a esta dissertação.
Será pois possível ser e nao ser simultaneamente?
A resposta a esta pergunta inicia-se na análise da angústia da arma apontada.
Aos olhos do original, a aniquilaçao seria a sua, do seu ser, da sua vida, única e insubstituível. Verdade?
Sim e não!
Sim, porque seria o seu ser que seria eliminado. Não, porque todo o seu legado intelectual estaria vertido na cópia, que tomaria o seu lugar como actor de uma vida, que julgaria (e mais importante que apenas julgada)... seria efectivamente a sua.
Chamamos a imortalidade para este assunto?
Definitivamente não... na percepção do original aniquilado.
Provavelmente sim... aos olhos de todo o mundo remanescente.
Delírio narcisista? Sim, porque sem dúvida resultado da ânsia de perpetuação pessoal.
Grandeza altruista se a intenção for a anulação do vazio da perda aos entes queridos.
De uma maneira ou de outra, versão diminuida do ideal natural de perpetuacão das espécies pela reprodução, em virtude da ausência da necessária mescla genética conducente ao aperfeiçoamento global; versão aperfeiçoada, uma vez que se não perderia o património intelectual gerado durante toda uma vida de estudo e meditação.
Qualquer que seja a perspectiva, demasiado distante para que possa ser encarado como opção num futuro próximo. Mas excelente como exercício de estilo que permita questionar o conceito clássico-religioso de alma.
A maioria das pessoas com quem privei, na fase terminal da sua vida, transmitiram-me uma sensação de dever cumprido, quer pela transmissão genética pura, mas mais importante, pela passagem do máximo do seu potencial intelectual não só aos seus descendentes directos, mas a todo o seu círculo de influências. No final, apenas a assunção de que tudo estava consumado, que toda a caminhada não teria sido em vão.
Ignoro se alguma vez chegaremos a ser imortais.
Começo lentamente a desdenhar deste anseio.... pela saborosa perversão do aproveitamento máximo da vida enquanto intervalo limitado... mas sobretudo pela assimilação da percepção destes anciãos... com uma pequena derivação pessoal... que me faz não temer, mas também não querer a arma apontada.
A alma, versão pessoal, é o resultado da simbiose da família enquanto ser único, reflectido no olhar cúmplice de todos para todos, nas saudades partilhadas, nas lições aprendidas por todos, por interacção global... nos sorrisos perpetuados na memória... que essa palavra secreta, enquanto existir, será a fiel guardiã do teu nome, das tuas feições, do teu cheiro... de ti.
Satisfaço-me pois com o prazer de a encarar como um testemunho que a duas vozes se entrega a quem mais se ama, para que, de geração em geração, seja passada, revista, melhorada e aumentada, contendo a soma do que de melhor todos os ancestrais, cada um à sua maneira, pôde transmitir.
Com que propósito?
Não sei... mas começo a suspeitar que talvez a sua busca seja o propósito em si... permitindo que, graças a esse legado, as gerações subsequentes possam então seguir O caminho!
Afonso Gaiolas

domingo, fevereiro 03, 2008

Catenárias e Sinusóides

Se a sua felicidade fosse mensurável, como a avaliaria?
E o que significa afinal o vocábulo?
Provavelmente o número de respostas diversas seria equivalente ao número de indivíduos aos quais formulássemos a pergunta.
Embora existam alguns factores universais potenciadores de tal estado de espírito, o modo como cada um, a cada momento da sua vida, os vê e aceita, torna a definição tão camaleónica, que até o mais conceituado dicionário tem dificuldade em definir.
Deixo os dedos divagarem sobre este tema, na sequência da leitura de um artigo científico, a publicar na revista "Social Science and Medicine", que descreve a linha da felicidade ao longo da nossa vida como um U, coincidindo os picos com a infância e a terceira idade, e o período mais difícil na ternura dos quarenta.
Não questiono a validade dos mais de dois milhões de inquéritos em 72 países, nem tão pouco a competência científica dos autores do estudo, mas recuso-me a assumir os resultados como uma fatalidade, porque isso equivaleria a demonstrar a falência do modelo de vida a que os humanos conseguiram ascender. E muito mais importante que acumular e sintetizar dados, parece-me relevante tentar perceber o porquê da descida abrupta na percepção da felicidade.
Do que precisaremos para que a catenária se transforme numa sinusóide de pequeníssima amplitude e elevada frequência, cujo topo namore o limiar da felicidade pura?
Os escassos anos de experiência pessoal não me permitem testar a validade de qualquer teoria, mas consigo reconhecer alguns factores como determinantes para um bem sucedido resultado final. Em primeiro lugar é essencial destacar a consciência, ou falta dela. É fácil identificar estados de felicidade pura em crianças que, contudo, quando questionadas, serão incapazes de identificar o conceito. Não havendo consciência, os estados de felicidade são os mais genuínos, porque são apenas os momentos de contentamento que contam, por si só, sem adição de expectativas, motivações ou desígnios. Verdade nua e crua, a mesma felicidade que identificamos nos nossos animais domésticos, porque resultante de uma entrega incondicional a cada instante, sem anseios colaterais. Desperdício, poder-se-á pensar, se apenas for considerada a limitada capacidade infantil de delineação de uma fita temporal que permita a reconstrução futura de tais eventos, mas importantíssima na percepção global de como fomos protegidos e educados na fase inicial da nossa vida.
Passada a fase coerente, entramos na fase delicada....
Já algum de vós parou para pensar na incoerência da frase, chavão de uma das mais recentes campanhas publicitárias de um banco português - "Aqui vou ser feliz!"?
Parece que, de um dia para o outro, depois de termos forçado a criança dentro de cada um de nós a mergulhar na fossa das Marianas, passámos a precisar de planear o tempo e o lugar onde nos vamos sentir mais leves do que aquilo a que o planeta nos parece querer obrigar. Queremos lembrar-nos de tudo o que nos ensinaram, mas esquecemo-nos daquilo que soubemos sem uma única lição, e que constitui a solução para a miserabilidade da procura infrutífera do "graal" da felicidade no "Spirit of Ectasy", e outros símbolos semelhantes. Em primeiro lugar, porque a palavra não foi criada para ser conjugada no futuro, pois fazendo-o, corremos o risco de deixar atrás de nós um manto cinzento escuro de frustrações e decepções, que nos impedirá alguma vez de chegarmos ao nosso objectivo... por simplesmente deixarmos de perceber qual é.
E depois... bem, digam o que disserem, comprem o que comprarem, vistam o que vestirem, conduzam o que conduzirem, ou pilotem o que pilotarem, as melhores e mais marcantes emoções e momentos das vossas vidas não terão afinidade alguma com o papel-moeda... serão simplesmente o resultado da vossa mais simples interacção com o mundo, e com as pessoas que vos rodeiam. Insensatez, menosprezar o poder dos cifrões? Não, se percebermos que servirão apenas para construir o Trieste das nossas vidas, resgatarmos o pequenito acocorado no fundo e lhe mostrarmos quão belas podem ser as fossas abissais. Será que precisaremos de esperar por um abraço apertado dos nossos netos, para que voltemos a encarar o mundo como nunca o deveríamos ter deixado de fazer?
Recuso-me a escorregar pela última vogal do alfabeto!...
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"Os homens que procuram a felicidade são como os embriagados que não conseguem encontrar a própria casa, apesar de saberem que a têm."
Voltaire
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Um abraço,
Afonso Gaiolas