segunda-feira, junho 25, 2007

Asas de frangos sem cabeça

Empanturrado numa orgia de americanices!
A expressão, que me fez recuar a caneta mais do que uma vez, reflecte contudo o sentimento que me preenche nesta estada, paradoxalmente não em terras do Tio Sam, mas no seu alter ego Canadá.
Que os referenciais europeus se esfumavam nas milhas náuticas necessárias para atravessar os dois continentes, não me restavam dúvidas, mas ainda assim, constatar in loco tamanha incompatibilidade cultural, confesso que nem uma sessão condensada de todos os documentários de Michael Moore me faria atenuar a estupefacção. É, contudo, também verdade que me encontro por detrás do sol poente da civilização ocidental, em pleno coração dos ex-domínios índios (ou primeiras Nações), como irónica e sarcasticamente por aqui gostam de os classificar. E como é deprimente presenciar a anulação de toda esta raça de seres humanos, incapazes de lidar com uma civilização que evoluiu (mecanicamente) demasiado depressa, e lhes ofereceu apenas o lado perverso das sociedades industrializadas, em troca do seu bem mais precioso... a identidade! A vulgaridade da presença, nas cidades mais movimentadas, de vítimas alcoolizadas, refugiadas na alienação oferecida pelas mais variadas substâncias psicotrópicas, viciadas nas demoníacas máquinas sugadoras de rendimentos ("slot machines", para os mais chegados), nitidamente deslocadas e incapazes de se encaixar na complexa teia social vigente, à qual, duvido, alguma vez tenham desejado pertencer, tudo isto representa a face visível deste problema centenário. Concordo que a solução não se encontra debaixo de um qualquer tapete, especialmente depois de definidas as fronteiras físicas e políticas de uma Nação, mas para um país possuidor de tantos quilómetros quadrados (inimaginável à luz do dimensionamento das Nações Europeias), penso que teria sido possível uma aproximação gradual que permitisse conjugar o melhor dos dois mundos. Verdade seja dita, o mesmo erro que cometemos em África!

(... pausa de alguns minutos!)

Confesso que estava a ser ingénuo.
O erro não está na aproximação repentina, mas nas personalidades responsáveis pelo contacto inicial e a sua intencionalidade. Infelizmente, em quase todos os lugares do globo, a mistura civilacional foi caracterizada pela ganância e má-fé dos pioneiros, tendo sido perpetrados um sem número de atrocidades que mancharam a História da Humanidade e que, no final, não mais fomentaram que o espezinhamento dos mais fracos, e não raras vezes o seu extermínio.
É estranho o sentido que esta crónica está a levar, totalmente díspar do tema a que inicialmente me propus. Será porventura a isto que Lobo Antunes se refere quando diz que a escrita se auto-impulsiona, num reflexo autónomo do nosso sub-consciente, que escapa totalmente ao nosso controlo.
A verdade é que este texto texto foi iniciado em consequência de uma declaração proferida por um insuspeito e conceituado médico (ou doutor, para os mais subservientes), que ouvi num dos programas, paradoxalmente leves, todos eles, disponíveis nos televisores destas paragens.
Não me sinto, no entanto, preparado para o abordar, por ter a mente toldada pelo sentimento de repulsa por tudo o que indirectamente me tentam impingir. Parece que o chip da padronização paira sobre mim, apenas aguardando um momento em que baixe a guarda, para que se aloje algures nas profundezas da minha massa cefálica.
Reconheço que provavelmente estarei a exagerar um pouco, correndo o risco de ser injusto por julgar o todo por algumas partes, mas não gosto do egoísmo subjacente à construção de um lar, cuja vida útil se esgota na da própria geração, sem qualquer sentimento de protecção ou legado aos que de si dependem.
Não gosto do exibicionismo e da ostentação de duzentos ou mais quilos de peso terreno, do desperdício pelo exagero, do desrespeito que isso representa pelos famintos dois terços do planeta e ainda assim, sublime ironia, da apresentação e confecção, como se da oitava maravilha do mundo se tratasse, no canal exclusivamente dedicado à comida (surpreendidos?), do mais requintado dos manjares, de fazer inveja ao mais virtuoso de entre os cozinheiros agraciados com três estrelas do guia Michelin... um enorme hambúrguer de quase um palmo de altura.
E vou-me abster obviamente de descrever a imagem do apresentador na fase de degustação de tamanha alarvidade.
Não gosto do artificionalismo dos cumprimentos conjugados com perguntas acerca do nosso estado emocional, das quais não esperam nem pretendem resposta, nem d0 aparente temor a Deus, condição sine qua non à aceitação pela sociedade normalizadora.
Não gosto dos sorrisos de plástico, das comidas de plástico, nem das vidas de plástico que aparentam ter, numa sociedade fabricante de autómatos, onde todos usam as mesmas expressões, pensam da mesma maneira e, acima de tudo, se recusam a aceitar que existe um mundo para além das estrelas e das riscas.
A confirmação deste facto está à distância da abertura do capot do automóvel de aluguer que puseram à nossa disposição, um "vulgaríssimo" aglomerado de oito êmbolos cuja disposição nos faz lembrar a antepenúltima letra do alfabeto português, e de uma voracidade no consumo de combustível apenas comparável aos quilos de dióxido de carbono emitidos para a atmosfera.
O ambiente, como o bem estar dos descendentes, aparentam ser irrelevantes numa escala de valores em que a locupletação de corpos e contas bancárias e um prato de asas de frango picantes ocupam os lugares cimeiros.
Vejo com tristeza e apreensão a fragilidade moral e o amorfismo social que se instalou e que, se malevolamente manipulados pelas elites, podem conduzir a um estado de hipnotismo global, que leve a considerar razoáveis ou mesmo defensáveis, as mais bizarras ideias e teorias, algumas delas, capazes de irremediavelmente fazer ruir o equilíbrio ainda restante neste tão mal estimado planeta.
A esperança, por seu lado, reside no simples acto de pensar para além do final de cada jornada, na coragem de ser mais do que uma simples formiga obreira, deixando emergir o melhor da natureza humana que há em cada um de nós, em prol de um bem maior... a consciência global.
Quanto aos devaneios da medicina e da biologia, resta esperar pelo próximo estado de alerta de reacção rápida, em terras, não do tio Sam, mas do Rei Alberto II.
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"Quando todos pensam da mesma forma é porque ninguém está a pensar."
Walter Lippman
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Até já,
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Afonso Gaiolas