segunda-feira, novembro 28, 2011

Alimente esta ideia

Desconheço se a frase escolhida para o título deste artigo estará protegida por direitos de autor. Decidi usá-la por analogia à campanha do banco alimentar que decorreu este fim-de-semana, um pouco por todo o nosso país.
Senti desde sempre que estas soluções de recurso (dádivas sazonais) soam a costuras mal efetuadas numa manta que deveria ser constituída por outro tipo de fibras, que não fossem tão atreitas à eclosão de fendas. Em suma, que deveria ser o Estado e não o indivíduo a assumir a função social de erradicação da pobreza, ou minoração dos seus efeitos.
Bombardeiam-nos hoje com as famosas gorduras do Estado, que se devem repensar todas as suas funções (leia-se eliminação da maioria delas), como se a supressão fosse a solução para um problema de má execução e inexistente controlo!
Falemos então de gorduras e calorias, para salvaguardar a minha consciência de acusações de falta de atualidade temática.
Vamos fazer um ligeiro exercício mental de alegoria familiar, de modo a apresentar a minha visão sobre o assunto que hoje vos trago.
No seio familiar (aquele conceito que devia ser a pedra basilar de onde toda a sociedade deriva), é consensual a organização de cada refeição segundo um padrão comunitário, em que todos beneficiam do trabalho executado uma só vez. 
E porque é que, ao longo dos tempos, foi este o padrão seguido e não uma versão individualista de "cada um prepara (ou caça) o seu"?
Ou melhor, porque é que não se tornou hábito que o cabeça de casal distribuisse uma quantia monetária a cada elemento do agregado familiar, para que este pudesse ir adquirir os seus alimentos onde bem entendesse?
Simplesmente porque, subjacente à primeira interrogação, existe uma margem enorme de ineficiência e desperdício, enquanto que a segunda se apresenta, financeiramente, absolutamente ruinosa.
A família é um organismo muito inteligente!
Pena é que as pessoas que constituem estas famílias, que tão boa conta do recado dão entre portas, não o consigam fazer quando se organiza uma macro-estrutura, neste caso o Estado.
Pense em dois milhões de euros. Parece-lhe muito ou pouco?
Já sei... depende da perspectiva.
E se eu lhe disser que é o valor aproximadamente pago, diariamente, pelo Estado, por uma refeição para os seus funcionários (ligeiramente acima dos quinhentos mil, no início deste ano).
O famoso subsídio de refeição, um subsídio diário que tem a natureza de benefício social a conceder pela entidade empregadora pública como comparticipação das despesas resultantes de uma refeição tomada fora da residência habitual, nos dias de prestação efetiva de trabalho (no valor de 4,27€ em 2011), representa a execução do plano rejeitado na segunda interrogação à economia familiar, que acabei de caracterizar de ruinoso!
Mas para além de ruinoso, é ainda ineficiente, porque centuplica o esforço para que se atinja um único objectivo... a saciedade destes seres humanos.
Qual então a verdadeira solução para o problema?
Na minha opinião, na criação de salas de refeições comunitárias, primariamente criadas para os trabalhores da administração pública, mas abertas a toda a população, como passarei a explicar.
Começo pelo grande problema que esta solução coloca... a perda de receitas do setor da restauração. Necessariamente, precisaríamos de muito menos... mas é disto mesmo que estamos a falar, de aumento de eficiência, de atingir os objetivos utilizando menos recursos. Passariam a nichos de mercado, oferecendo alternativas mais exclusivas e exóticas (não necessariamente chinesas) às refeições tomadas fora de casa.
A grande mais valia empresarial deste projeto constituir-se-ia na (re)vitalização do setor primário de cada região deste país depauperado deste absoluto valor estratégico nacional. 
Esta solução passaria pela aquisição preferencial dos produtos alimentares no mercado local, fator potenciador do empreendedorismo individual, uma vez que o escoamento dos géneros alimentícios estaria desde logo parcialmente garantido, a quem por esta área de negócio decidisse enveredar. Portugal, terra de pequenas e médias empresas, poderia assim ver florescer novos produtores de carne, pão, ovos, legumes, lacticínios, peixe, entre outros bens essenciais, readquirindo uma autonomia confortável para os tempos de agrura global que surgirão quando os "sapiens sapiens" superarem os dez mil milhões nesta esfera que não aumenta.
Como já decerto depreenderam desta dissertação, desapareceria o valor do subsídio de refeição, usando o Estado o dinheiro para diretamente fornecer a refeição a todos os seus trabalhadores. Só neste pequeno processo poupar-se-ia pelo menos, diariamente, metade do dinheiro atualmente dispendido. Neste caso, um milhão de euros por dia que certamente seriam suficientes para saciar também todos os indigentes abrangidos pelas múltiplas ações do banco alimentar e seus derivados, e que diariamente dependem destes esforços "individuais" para evitarem uma humilhante (para todos nós) subnutrição.
Quanto à restante população não indigente, teria também acesso a este serviço, a preços de margem de lucro residual, que apenas cobrisse a sustentação do sistema. Falo neste caso da remuneração dos trabalhadores afetos a esta atividade, bem como à manutenção das infraestruturas de apoio.
Aos óbvios ganhos de produtividade somar-se-iam os ganhos comunitários, pela socialização e aproximação de todos os indivíduos da comunidade, bem como da possibilidade de coexistência de fóruns não oficiais de discussão pública dos assuntos locais, induzindo as pessoas à prática de uma cidadania que se pretende ativa.
Para além de todas as vantagens enumeradas, da mais valia nutricional de condicionar as pessoas a uma alimentação saudável (por se terem que sujeitar a uma dieta equilibrada, ao invés da dieta do impulso caprichoso), bem como da moralização do Estado na sua função social, solucionar-se-ia ainda, do ponto de vista de quem cozinha, um dos maiores dilemas dos dias de hoje... 
... decidir aquilo que será o almoço de amanhã!!

Bom apetite,

Afonso Gaiolas


terça-feira, novembro 01, 2011

O estado do Conselho

No dia 25 de Outubro de 2011, o senhor Presidente da República Portuguesa convocou mais uma vez o Conselho de Estado para que o aconselhasse no seu processo decisório dos destinos da Nação.
Concordo com esta adordagem descentralizada e plural de auscultação de opiniões que antecede o processo de tomada de decisões, especialmente se tão importantes como as que a figura maior do Estado Português necessita de tomar ao longo do seu mandato.
Estranho, no entanto, a composição do dito Conselho.
Estranho que a alínea d) do artigo 145º da Constituição da República Portuguesa estabeleça ser competência do Conselho de Estado a pronunciação sobre a declaração de guerra ou a feitura da paz... e que o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas nele não tenha assento permanente.
Em contrapartida, que o poder legislativo esteja representado numa proporção duas vezes superior ao poder executivo e três vezes superior ao poder judicial.
Não questiono a mais-valia intelectual de cada um dos membros atuais do Conselho (por inerência, designados ou eleitos), mas poucos terão os conhecimentos técnicos e a visão estratégica, do ponto de vista militar, que a décima primeira figura na hierarquia do Estado Português detém, forjada ao longo de mais de três décadas de serviço militar incondicional à Nação Portuguesa.
Poder-se-ão validar alguns dos argumentos que sustentam a especificidade da Casa Militar da Presidência da República, como órgão de apoio ao Presidente no exercício da sua função de Comandante Supremo das Forças Armadas, e nesse fórum ser mais adequada a discussão técnica do assunto que anteriormente referi, mas será absolutamente essencial que a visão militar seja vertida no processo de decisão (necessariamente político) de declaração de guerra ou feitura da paz com outras Nações ou Estados, que terá lugar nas reuniões do Conselho de Estado.
Este assunto, tal como a declaração de Estado de Sítio, que naturalmente necessitará de aconselhamento militar (uma vez que potencialmente pode estar envolvida uma agressão efetiva ou iminente por parte de uma potência estrangeira), são demasiado importantes para o destino de um país, para que seja ignorada neste Conselho, a opinião do maior estratega militar no activo. Tanto mais que se estabelecerá a subordinação das autoridades civis às autoridades militares, ou à sua substituição por estas, na eventualidade de uma ocorrência desta natureza.
A isenção e a imparcialidade são valores terrivelmente difíceis de alcançar por um ser humano. Faz parte da nossa natureza imperfeita, a incapacidade de sermos absolutamente imparciais nas decisões que tomamos ao longo da nossa vida. Contudo, todos devemos fazer um esforço contínuo de aproximação progressiva a este patamar de justiça relativa, especialmente se detivermos poder e responsabilidade sobre outros seres humanos, para que as variáveis que controlamos possam demonstrar que o interesse pessoal não interferiu em decisões que afetam a comunidade que de nós depende. 

Um abraço,

Afonso Gaiolas

quarta-feira, junho 29, 2011

Ideias que dão frutos

E se hoje, apenas porque podia, por um qualquer devaneio mental menos ponderado, decidisse privatizar os metros cúbicos de ar que pairam sobre a sua cabeça?
E se, em consequência de tal acção, o obrigasse a pagar à minha recém-constituída empresa, uma taxa de inalação da preciosa mistura de azoto, oxigénio, árgon, dióxido de carbono e outros gases menos abundantes, que constituiriam a minha mais-valia bolsista - a atmosfera (marca registada por mim!).
Mas iria mais longe ainda... para o forçar a adquirir os meus metros cúbicos de ar puro (a preços condizentes com uma empresa que detém o monopólio de exploração de um bem essencial), convenceria o poder local, regional e nacional da necessidade de injectar, nos espaços onde a minha jurisdição não me permitisse exercer tão nobre actividade profissional, uma replicação da atmosfera de Titã, que o metano é um gás que também deve merecer lugar de destaque na arquitectura ambiental e paisagística de um país.
Não lhe restaria outra opção... senão pagar para poder continuar a viver.
O radicalismo é terrível e tem destas coisas. Faz parecerem ridículos exemplos que não nos são familiares.
E em relação àqueles com que lidamos todos os dias, e que nos habituámos a aceitar como fatalidades?
Vivemos hoje um cenário de grande sufoco financeiro. À sobrecarga de impostos, adiciona-se a mistura explosiva de congelamento de remunerações e aumento de inflação. 
Simultaneamente, a dieta mediterrânica sofre ferozes ataques das mega cadeias de restauração alimentar neocolonizadoras (que, fazendo juz ao nome... contribuem para o aumento da incidência do cancro do cólon na população), e nós, os principais interessados em manter tão saudável, mas sobretudo económico estilo de vida, nada fazemos para contrariar o que parece ser um ridículo destino.
A alegoria que vos apresentei no início do artigo tem o intuito de abanar consciências para um dos maiores exemplos de hipocrisia humana com que a nossa auto-proclamada avançada sociedade nos presenteia, e que foi sendo  passivamente aceite ao longo de múltiplas gerações de Portugueses.
Se é verdade que todos se indignariam perante tamanha atmosférica atrocidade capitalista , por que razão não se incomodam se negarmos à população que não é dona de um pedaço de terra, o acesso a um bem de primeira necessidade que a  natureza nos oferece desde o início dos tempos?
Quantas árvores de fruto conhece plantadas em espaços públicos, acessíveis a todos os cidadãos?
Dir-me-ão (sem surpresa, porque o vosso interlocutor é alentejano) que diversas localidades adoptaram o citrino como imagem de marca das suas ruas. Mas, surpresa das surpresas, são amargas as laranjas ou tangerinas que essas árvores nos oferecem.
Poderia ser pior?
Julgo que não.
Porque o racional maior de tamanha brutidade é a protecção dos produtores frutícolas e o seu negócio (lembram-se da marca registada atmosfera?)!!
Porque mesmo sem qualquer tratamento priveligiado, uma árvore autóctone florescerá e dará maravilhosos frutos, de fazer inveja ao Continente, Pingo Doce e afins, fazendo cair por terra o argumento da necessidade de mão-de-obra adicional.
E porque o argumento do roubo nocturno e contrabando não faria sentido, uma vez que estaríamos a falar de algo desprovido de valor local (por excesso de oferta).
Imaginem novo exemplo, para explicar este nível de hipocrisia. 
Como se sentiria se, no parque onde habitualmente brinca com os seus filhos, cortassem a água do bebedouro público, com a justificação de que seria necessário proteger o negócio de venda de água engarrafada da esplanada contígua ao dito espaço?
E como é que, sendo certo que todos os exemplos anteriores nos indignam, no caso de se tratar de assegurar gratuitamente à população um precioso complemento nutricional, fonte de vitaminas, minerais, antioxidantes, entre outros componentes benéficos ao nosso organismo, assobiamos para o lado e fingimos não ver?
Ou pior, estamos tão embrenhados nas nossas vidinhas tão excitantezinhas, que nem nos apercebemos de quão estupidificados nos tornámos ao acharmos isto "normal"!
Estou apostado em exercer o meu círculo de influência para alterar o que conseguir, enquanto puder, para que o mundo fique um pouco melhor do que quando o encontrei (eu, o senhor Bear Grylls e todos os que abraçaram o espírito do escutismo como forma de vida). E nesse sentido, exorto-vos a, por um lado, intelectualmente promover este ideal de partilha comum e, por outro, fisicamente actuar à vossa escala, para mudar as mentalidades tacanhas de tantos intervenientes políticos do nosso país. No meu caso, carinhosamente protejo e sacio a sede a uma figueira alentejana imigrada em terras vidreiras, até que possamos todos, família, vizinhos e passarada indígena usufruir das propriedades laxantes, diuréticas e desintoxicantes de tão apreciado fruto, alimento preferencial dos atletas da Grécia Antiga e do meu pai também!
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"A mão que embala o berço é a mão que domina o mundo"
(Tente estender o seu berço para além da descendência. Verá que há muitas mais pessoas que também gostam / precisam de ser embaladas. No final, domine o mundo sem ceder ao lado negro da Força!) 
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Um abraço,
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Afonso Gaiolas

domingo, junho 12, 2011

Período de reflexão

Terminou mais um sufrágio nacional.
Uma vez mais, escolhemos quem nos representará na acção governativa, durante os próximos anos.
Verdes e vermelhos, azuis e laranjas, pretos e brancos, todos se esforçaram por atrair a atenção dos cidadãos votantes. Uns com mais, outros com menos recursos financeiros, todos desejaram dar um ar da sua graça e expor publicamente os motivos pelos quais mereceriam a confiança dos portugueses para que lhes fosse entregue a função de comandar o navio em tão conturbado oceano de dívidas e incertezas.
Não tenciono, nem hoje nem provavelmente nos próximos vinte e cinco anos, politizar o meu raciocínio falado ou escrito. Não será pois, esse, o objectivo deste artigo. Tão-somente me deterei no famigerado período de reflexão que, em virtude do seu incumprimento, foi este ano responsável por algumas detenções e levantamento de autos de contra-ordenação.
Diz então a lei eleitoral que, desde a véspera do dia das eleições até ao término do período de votação na região autónoma dos Açores (por a hora legal estar atrasada 60 minutos em relação à plataforma continental de Portugal), não é permitida a execução de propaganda eleitoral de qualquer espécie. Quer isto dizer que o incentivo ao voto discriminado está terminantemente proibido durante este período.
Diz também outra lei, desta feita a 97/88 de 17 de Agosto - Afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda, no número 2 do artigo 6º que, quanto aos meios amovíveis de propaganda, "compete às câmaras municipais, ouvidos os interessados, definir os prazos e condições de remoção dos meios de propaganda utilizados."
Estou absolutamente concordante com o texto da primeira lei, por julgar ser necessário uma pausa em todo o ruído de fundo, para que todos possam conscientemente julgar os protagonistas do processo.
Em relação à segunda lei, denota claramente um desajuste face à cultura mediterrânica de dobragem de regras em função da conveniência pessoal ou da colectividade que se representa. Não é admissível que se dê espaço de manobra às entidades políticas para que, utilizando as mais variadas formas de pressão e subterfúgios, possam protelar a retirada de toda a propaganda gráfica dos espaços públicos do nosso país, uma vez finda a campanha eleitoral.
Graças a este conveniente parágrafo legislativo, conseguimos assistir ao inqualificável paradoxo eleitoral de, ainda que sendo proibida a propaganda no dia da votação, o caminho que se percorre até à urna  poder ser um calvário visual de vota neste, vota naquele, ou vota ainda naqueloutro em cartazes megalómanos (ah... mas com garantia de inviolabilidade a quinhentos metros da mesa de voto... )!
Vou-me socorrer da redacção do número 1 do artigo 141º  da lei 14/79 de 16 de Maio - Lei Eleitoral da Assembleia da República para enfatizar tudo o que acabei de defender: - "aquele que no dia da eleição ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio será punido com prisão até seis meses e multa de 500$ a 5.000$."
Fiquei na dúvida se estaria a ser injusto com as pessoas ou instituições. É que na minha opinião, em última instância, também o presidente da câmara teria que ser responsabilizado, caso tivesse definido como prazo limite para a retirada da propaganda, uma data subsequente ao início do primeiro nanossegundo do período de reflexão.
Mas não, porque o vocábulo propaganda significa mesmo o conjunto de actos que têm por fim propagar uma ideia, opinião ou doutrina. E, claramente é exactamente disso que se trata, a quinhentos e um metros da urna de voto!
Todos nos habituámos a ver pinturas murais, cartazes megalómanos e outros de menores dimensões que perduram por vezes meses e anos sem que seja exigida a sua retirada ou responsabilizadas as instituições incumpridoras no processo de remoção. Por nos termos habituado, passa a ser admissível?
E que dizer quando a normalidade da ilegalidade consegue chegar a letra de lei?
Estupefactos?
Também eu!
Deixo-vos então a transcrição do número 2 do artigo 139º da mesmíssima Lei Eleitoral da Assembleia da República, que nos fala do dano em material de propaganda eleitoral: - "Não serão punidos os factos previstos no número anterior (destruição do material de propaganda) se o material de propaganda houver sido afixado na própria casa ou estabelecimento do agente sem o seu consentimento ou contiver matéria francamente desactualizada."
Pois bem, a lei reconhece aqui tacitamente a existência de propaganda não removida de eleições anteriores (que por ter atravessado o período de reflexão se constitui ilegal), apenas porque quer objectivar  a ilibação de qualquer pessoa de responsabilidades perante a sua destruição. No meu entender, devia era compensar pecuniariamente esse cidadão por ser ele a executar uma tarefa que a instituição política não realizou, e que o Estado se reconhece - em versão legislada - incompetente para solucionar!
Este é o tempo ideal para explicar às pessoas que a Nação Portuguesa assenta numa base sólida de igualdade perante a lei. Mas mais importante que isso... explicar aos seus redactores a bidireccionalidade da palavra igualdade, de modo a salvaguardar a permanente garantia de construções frásicas de carácter legislativo isentas de vontades pessoais, sindicais ou partidárias.
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"Fecha os olhos para não seres cego."
Virgílio Ferreira
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Um abraço,
Afonso Gaiolas  

sexta-feira, abril 15, 2011

Remuneração

Pertence ao restrito grupo de cidadãos que considera ser correctamente remunerado?
Ou, pelo contrário, à esmagadora maioria que considera ignóbil a quantidade de papel-moeda que recebe como contrapartida do trabalho que desempenha?
Se pertence ao clube dos sortudos sobre os quais falei em primeiro lugar, provavelmente receberá um ordenado tão obsceno que não tem coragem de reclamar do seu valor.
No meu caso, apesar de não me encaixar no perfil de obscenidade, consideraria equacionar ser correctamente remunerado em valor absoluto... mas decididamente muito subvalorizado em valor relativo.
Este tema do dinheiro, que tanta importância acabou por ter no final do século passado e primeira década deste que agora desponta, encaixa na perfeição no momento de sufoco financeiro que o país atravessa. Período este que só demonstra a falta de discernimento de quem gere os destinos de um povo (e já agora, do povo que se habituou a gritar e espernear para conseguir alcançar alguma mesquinha vantagem sectorial ou sindical). Se é admissível que todos se tenham deslumbrado pela acção governativa desregrada dos primeiros anos do pós-25 de Abril, recebendo como castigo um puxão de orelhas do tamanho de um fundo monetário que "supostamente" representa o mundo, reincidir no erro é manifestamente patético... e esgoto os adjectivos na qualificação da necessidade de uma terceira intervenção.
Mas é exactamente este o ponto em que nos encontramos.
Poque perdemos, ao longo de quase quatro décadas, a noção do que valíamos e do que a Nação dispunha para nos recompensar.
Porque subvertemos, invertemos e esquecemos o verdadeiro significado de ser, ter e dever!
E porque julgo que todos estes conceitos andam hoje perigosamente de mãos dadas, importa que se apliquem critérios de justiça e moralidade que não firam a coesão do tecido populacional que há tantos séculos habita tão precioso solo.
Para que não venha mais tarde a ser acusado de inconsequente e superficial, apregoando apenas uma moralidade vazia de operacionalização, exponho-vos a minha visão do que deve ser o programa de remunerações do Estado, ao longo de toda a vida de um cidadão.
O primeiro passo no sentido da criação deste programa é o estabelecimento de um valor monetário que, multiplicado por dois (estabelecendo assim como padrão familiar desejável a existência de duas pessoas adultas), possa constituir uma remuneração suficiente para que uma família possa viver condignamente (sem luxos) e educar dois filhos até à idade adulta.
Assumido este valor (que se assemelhará ao salário mínimo nacional - SMN... apenas no nome), posso iniciar o raciocínio.
Ao nascer, todas as crianças portuguesas receberiam do Estado uma conta poupança (resguardada da voracidade privada na CGD, o tal banco que a tantos apetece privatizar), no qual seria depositado um valor mensal que, partindo de um valor simbólico, cresceria numa progressão aritmétrica, até atingir o valor do SMN com o advento da idade adulta - os 18 anos.
Aí, dar-se-iam as primeiras escolhas pessoais.
Quem decidisse que o 12º ano de escolaridade seria o seu último numa sala de aulas, deixaria de receber este valor, pois seria integrado no mercado de trabalho indiferenciado.
Os que decidissem prosseguir os estudos, continuariam a receber sempre o mesmo valor (SMN), até que terminassem a licenciatura (21 anos), o mestrado (23 anos) ou o doutoramento (25 anos).
O valor atribuído pelo Estado a estes alunos cessaria imediatamente em caso de falta de aproveitamento escolar ou mau comportamento, em contexto escolar ou fora dele.
Suspeito que resolveríamos três problemas de uma vez só, mas é só mesmo uma suspeita...
O usufruto deste dinheiro seria pessoal, intransmissível e cativo até à idade adulta, altura em que o jovem teria a prerrogativa de lhe dar o destino que mais lhe aprouvesse.
A ideia seria fornecer as ferramentas necessárias a um início de vida activa sem recurso ao crédito (ou de uma forma muito limitada), quer para a auto-empregação, quer para acesso ao mercado imobiliário, gerando um potencial de autonomia, iniciativa e empreeendedorismo a toda a população jovem portuguesa.
Passada a idade da formação, entramos agora na fase do mercado de trabalho estatal. O mercado privado fica obviamente de fora deste ensaio, pois aqui deve funcionar a lei da oferta e da procura, embora seja ainda assim legítimo recomendar moralidade na luta pelos talentos.
O segundo grande passo é o estabelecimento de um tecto máximo de remunerações estatais que, a meu ver, se deverá situar num valor 10 vezes superior ao SMN, estando-lhe permanentemente indexado. A este valor poderão potencialmente aceder todos os cidadãos doutorados ou que desempenhem funções de reconhecido mérito e elevada exigência intelectual.
Será pois essencial estabelecer, sem ceder a quaisquer formas de pressão, uma equiparação de profissões, com base nos critérios estabelecidos anteriormente, e nunca com base em pressões sindicais, sectorais ou de qualquer outra espécie.
Aos cidadãos com o grau de mestre e com profissões equiparadas, o tecto máximo restringir-se-ia a 7 vezes o valor do SMN, aos licenciados 5 vezes e aos indivíduos apenas com o 12º ano, independentemente da profissão escolhida, 3 vezes o SMN.
Estes valores, específicos para cada profissão, poderiam ser atingidos aos 45 anos, ou seja, bem no coração da vida activa de cada cidadão, numa altura em que, potencialmente, mais necessidade de financiamento existirá na família. Evitar-se-ia, assim, que o tecto máximo da remuneração fosse atingido apenas 1 dia antes da reforma, numa altura em que a importância e necessidade do dinheiro decresceu já radicalmente (grandes investimentos pagos e filhos em idade adulta e autónomos financeiramente).
A reforma, início da fase de merecido descanso, meditação e contemplação perante o que a vida tem para realmente oferecer, começaria impreterivelmente aos 65 anos, de modo a que, em condições normais, restassem cerca de 20 anos de vida a cada pessoa(assumindo, para este estudo, 85 anos a idade da esperança média de vida portuguesa, sem distinção de género) para que desfrutasse deste novo momento da vida com bem entendesse. O objectivo seria transmitir às pessoas o ideal de que o trabalho não é O propósito da vida, não fazendo sentido apenas sobreviver para cumprir esta obrigação social.
Regressando à evolução monetária desde a entrada no mercado de trabalho, verificamos que, existindo uma progressão linear desde a entrada no mercado de trabalho até aos 45 anos, altura em que, potencialmente, se atingirá o topo monetário da carreira, essa progressão será tanto mais elevada quanto mais estudos tivermos atingido (por descolarmos mais tarde do SMN). Em contrapartida, quem ingressar mais cedo no mercado laboral, poderá começar imediatamente a evoluir monetariamente na direcção do seu topo salarial.
Respeitando a coerência do artigo anterior, ao invés de subidas mais acentuadas em função do bom desempenho profissional, seria a progressão anulada em anos de fraco desempenho, comprometendo imediatamente a chegada ao topo, que seria diminuído numa directa proporção da quantidade de anos retido em consequência do mau desempenho profissional.
Admitindo, no entanto, que um trabalhador, ao longo da sua vida activa, continuamente deu o melhor de si no serviço que escolheu desempenhar em prol da comunidade, veria a sua linha remuneratória permanecer no seu topo específico (em função da sua profissão, habilitações e desempenho ao longo da vida), até ao dia em que reformasse.
Entramos finalmente na fase pós-laboral, ou da reforma.
Já referi há pouco que seria inegociável a entrada nesta fase noutra idade que não os 65 anos, tendo explicado a razão filosófica por detrás desta escolha. Contudo, importa mencionar que acho estupidificante que se cedam a hipóteses puramente financeiras e, acima de tudo, egoístas, que levem os governantes a equacionar adiar a idade da reforma dos trabalhadores activos, apenas para alimentar alguns pensionistas que, durante três décadas, criaram leis à medida dos seus interesses pessoais, que salvaguardassem uma velhice dourada, vergonhosamente irresponsável porque ignorando conscientemente o pesado fardo que ofereceriam às gerações futuras.
Tentando não cometer os erros do passado, e mantendo simultaneamente um grau de justiça relativa e recompensa, não seria defensável que se sustentassem os valores da remuneração da vida activa, aquando da entrada na reforma, uma vez que já não se desempenha oficialmente qualquer actividade. Assim, neste modelo remuneratório, a partir do dia da reforma, iniciar-se-ia uma trajectória descendente linear, desde o topo salarial com que atingimos a reforma, qualquer que ele fosse, até ao valor do SMN, a atingir aos 85 anos, idade que convencionei para a esperança média de vida. Para além desta idade, seria mantido constante o valor do SMN, até que a natureza decidisse seguir o seu curso natural.
Este modelo contemplaria algumas variações à sua linearidade, em virtude das opções pessoais de cada um. Se um jovem decidisse iniciar um ano sabático após o final dos seus estudos, todo o gráfico escorregaria um ano, estando o topo da carreira apenas alcançável aos 46 anos. Durante esse ano de transição entre os estudos e o mercado de trabalho, o seu rendimento estatal seria nulo, assim permanecendo até que o seu serviço público se iniciasse.
Do mesmo modo, se a opção fosse o ingresso no mercado privado, a remuneração estatal manter-se-ia nula desde o final dos seus estudos até que atingisse os 85 anos, altura em que voltaria a receber o SMN vigente na altura. 
Estando consciente da polémica que todas estas medidas gerariam, permaneço convicto de que só deste modo se poderá fazer uma revolução silenciosa baseada, não em valor... mas em valores.
Um abraço,
Afonso Gaiolas

domingo, março 13, 2011

Premiar compensa?

As questões do mérito, da premiação e do castigo tomaram, ao longo dos séculos, diferentes proporções na medida da educação das crianças e jovens de todas as civilizações. Todas, é certo, utilizadas na convicção de melhor fornecer à população uma medida de justiça e recompensa face ao esforço individual.
Estas práticas tiveram, naturalmente, um efeito bidireccional de contágio à idade adulta, nas mais variadas situações onde é requerida a avaliação do mérito individual.
Neste, como noutros assuntos, se nos encontrarmos no fluxo da corrente, dificilmente algo nos espanta ou questiona, pois tudo está normalizado, de acordo com os padrões que a generalidade das pessoas assimilaram como vigentes. Contudo, se a nossa convicção é divergente, é muito fácil que as tentativas de desmoronamento psicológico se sucedam, pois quebrar o "status quo", significa, para a esmagadora maioria, uma inoportuna saída da sua zona de conforto.
Este artigo começa com a a finalização da leitura de um outro, numa célebre revista destinada a pais inseguros, mina de ouro para psicólogos "la palissianos".
Rezava então a história que um pobre diabo, aluno medíocre na escola, ao qual tinha sido prometida uma moto no caso de passagem de ano (acentuadamente uma história a preto e branco, tão distante já vai o stress escolar com o fantasma da retenção na mesma classe) e que, pese embora não ter atingido o objectivo, se deleitou ainda assim com a belíssima aceleração da dita motoreta.
Teceram-se as mais variadas considerações acerca da gravíssima falha dos pais enquanto educadores, que o premiaram, mesmo sem merecimento, numa euforia de razão que devorou mais do que uma página da dita publicação mensal.
Não desdenhei do artigo... mas fez-me vir à superfície a convicção de quão distante estou desta maioria que educa.
Prometer um prémio para a execução de uma tarefa que é, por definição, suposto concretizarmos?
É neste momentos que agradeço a clarividência de meus pais neste campo específico da educação como, em boa verdade, em tantos outros, alguns deles só ao longo dos anos da idade adulta aprendi a valorizar.
A resposta à pergunta anterior é NÃO!!
Porquê?
Porque mina a base referencial de educação e justiça.
Deve um pai receber um prémio por acarinhar os seus filhos, quando esse é o seu dever?
Deve um piloto receber alvíssaras quando executa uma aterragem segura, quando é essa a sua obrigação?
Deve um aluno ser recompensado por ter boas notas (nem menciono o chavão "passar de ano", por ser demasiado degradante para uma sociedade que se queira evoluída e minimamente exigente para consigo mesma) quando é essa apenas a sua incumbência durante todo o ano lectivo?
Definitivamente... não.
E, pela mesma ordem de ideias, sou terminantemente contra os prémios e bónus, quer sejam de produtividade, quer por cumprimento de objectivos pré-definidos.
Que maneira mais astuta de minar todo o sistema e incutir um factor perverso na complexa engrenagem que é o sistema de remunerações face ao trabalho que cada um desenvolve na sociedade.
No presente sistema (o dos bónus e prémios), recompensa-se o trabalho bem feito.
E quanto ao mal feito...?
Recompensa-se pelo pagamento do vencimento natural!
Tal como um pai deve estar permanente empenhado em oferecer tudo o que intelectualmente possui à sua descendência e, sendo esse apenas o seu trabalho, não esperar receber mais do que o amor incondicional de seus filhos, também dele não se espera menos do que o total empenho em qualquer outra tarefa social, neste caso remunerada.
Nesta ordem de ideias, o que quererá dizer o bónus?
Que se reconhece que as pessoas não dão o melhor de si nas tarefas que lhes são cometidas, sendo portanto necessário oferecer algo mais para que verdadeiramente se esforcem?
Ou significará que, bastando ser medíocre (aquele que, tendo potencial, o não aplica por desleixo ou incúria) se receberá o ordenado previsto para a função desempenhada?
Vou tentar ainda ignorar os que, mesmo sendo medíocres, recebem, por definição estatutária, os referidos bónus e prémios (o tal exemplo do infeliz rapaz e a sua motocicleta).
É este o espelho de uma sociedade onde a remuneração se dá por garantida, independentemente do esforço, não se castigando o laxismo nem a falta de empenho. Uma sociedade onde cada um só dará o seu melhor e se tornará mais produtivo, se houver recurso a chantagens pecuniárias. Uma sociedade onde, por outro lado, se reconhece tacitamente que a remuneração é indigna do esforço exigido, e assim se oferecem bolos-rei de final de ano para fazer esquecer tamanha tacanhez, malabarismo que torna Portugal, ano após ano, num dos países onde mais se acentua o fosso entre a remuneração dos gestores de topo e a generalidade dos trabalhadores indiferenciados. Em qualquer dos casos, é a transparência que perde.
Num sistema justo, não existirão manobras de diversão, nem remunerações/recompensas injustas (por defeito ou por excesso). Existirá a convicção de que será justo auferir um determinado valor face ao trabalho desempenhado, mas que não será exigido menos que o total empenhamento individual na execução de cada tarefa social.
Só assim poderemos passar, transversalmente, do rótulo de geração apoucada... para uma orgulhosa geração de descendentes da espada de dois metros de Henriques!
Afonso Gaiolas

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Um interesse desinteressado

Nestes dias turbulentos, em que sistemas políticos caem à mesma velocidade a que sobem as décimas dos juros da nossa dívida pública, recuperei do meu baú de projectos utópicos, aquilo que penso ser a melhor alternativa aos sistemas políticos com que os gestores do mundo nos presenteiam nos dias de hoje.
Há muito tempo que defendo que os sistemas de gestão de seres vivos devem ser tanto mais inflexíveis e rígidos, quanto mais irracional e mal formada for a massa a gerir mas, por oposição, tanto mais abertos e flexíveis, quanto melhor for a formação, idoneidade e racionalidade dos mesmos indivíduos.
Veja-se o exemplo familiar, que espelha na perfeição esta teoria, e me evita assim a utilização de regimes políticos reais, sobre os quais não pretendo tecer quaisquer considerações.
Existe, no seio familiar, uma hierarquia muito bem definida, em que os pais são muito autoritários e rígidos, enquanto os seus filhos estão no processo imberbe de formação e aquisição de valores. Gradualmente, à medida que se assiste a um processo de solidificação da personalidade segundo os valores de humanidade e honorabilidade pelos quais é suposto um ser humano reger-se, os processos de gestão e decisão familiar tornam-se cada vez mais descentralizados e igualitários, num cenário em que as diferentes vozes serão cada vez mais tidas em consideração, na hora das decisões familiares. Este processo culminará na fase de criação de um conselho familiar, entidade não reconhecida oficialmente, mas que manterá o equilíbrio saudável deste grupo de indivíduos ao longo das décadas subsequentes.
A cada chegada de novos membros, segue-se novo processo de inserção, num movimento contínuo que tenderá para a perfeição, na medida em que cada indivíduo será melhor que o seu predecessor, por incorporar todas as lições aprendidas pelos seus antecedentes, mas também porque utilizará esses conhecimentos para melhorar o próprio sistema familiar em que se insere.
E qual o maravilhoso segredo do sucesso desta fórmula?
Desinteresse!
Não na vertente da palavra original ao qual foi acoplado o prefixo de negação, mas como sinónimo de generosidade e desapego.
É este o primeiro passo para o sucesso de qualquer sistema. Que os decisores sejam isentos e completamente despojados de interesses pessoais directos ou indirectos. Situação que apenas pode ser absolutamente pura no seio familiar, mas que pode tender para tal, se houver consciência de serviço colectivo, no desempenho dos cargos públicos de gestão.
Não existindo esta condição, surgirão as mais variadas e injustas razões para que este ou aquele sistema político colapse ou defraude os seus cidadãos. O que falha, na verdade, é a cabeça que gere os tentáculos do polvo, e não o polvo em si. O que não impede que o dito "animal" não esteja também em estado adiantado de decomposição corpórea, para além do identificado defeito cerebral.
Convençamo-nos então que o ponto primordial do caderno de encargos de um governante é a sua isenção, mais do que a genialidade e competência técnica, pois estas qualidades, ao serviço de causa própria, têm um potencial efeito destruidor superior à mais danosa das gestões incompetentes (ainda que avassaladoramente benéfica para as instituições bancárias da Suiça e das Ilhas Caimão).
Assumido este pressuposto, passemos à fase seguinte desta evolução política...
Acedemos hoje à nossa instituição bancária e gerimos o nosso dinheiro pela internet?
Preenchemos e validamos a nossa declaração de rendimentos anual pela internet?
Confiamos portanto que o sistema aberto da internet pode ser suficientemente seguro para nele executarmos transferências bancárias. O Estado confia que a internet é um meio suficientemente seguro para através dele comunicar e lidar com os cidadãos, no que ao pagamento dos seus impostos diz respeito! Mas o mesmo Estado que tão abertamente confia no sistema para que os cidadãos contribuam monetariamente para o seu financiamento através dos impostos, não se sente suficientemente confiante para que o processo de escolha dos seus representantes governativos seja sufragado por intermédio de uma votação numa rede segura (provavelmente será necessária uma intranet - fechada e portanto inatacável). E, apesar das maciças bofetadas de luva branca disfarçadas de abstencionismo, mantém a cabeça enterrada na areia, sustentado na convicção de que, em pleno mês de férias, toda a família oriunda de Bragança a gozar um merecido descanso em Sagres, não possa calçar os chinelos e deslocar-se à junta de freguesia desta localidade do Algarve para electronicamente votar, mas seja forçada a cruzar todo o país (provavelmente não de chinelos), para cumprir o mesmo dever/direito.
Porque levanto esta questão neste ponto do artigo?
Porque ela representa uma condição essencial para que todo o meu raciocínio se concretize.
Muito para além da simples votação nos representantes governativos, este sistema de consulta popular deve, num sistema que se pretende verdadeiramente participado, funcionar como um "mega conselho" em que cada um verta a sua opinião (pelo voto) sobre assuntos e decisões de interesse público, quer estes sejam locais, regionais ou nacionais.
Nesta versão de democracia, o actual exercício indirecto de soberania do povo será substituído pelo exercício directo da soberania, uma vez que as decisões serão por si tomadas, e não delegadas em caras e colorações avulsas ao sabor da sinusóide de poder que se inverte a cada dois mandatos.
Os representantes do povo devem ser, neste novo paradigma, apenas a face visível da operacionalização dos desejos da sua população.
Dir-me-ão que os programas de Governo são isso mesmo. Pois bem, e se eu concordar com a medida A mas não com a B. Tentarei nova proposta, que desta vez me apresenta uma medida C muito boa, mas que me deprime com uma medida D que considere desadequada. E assim corremos todas as propostas, sem nenhuma nos satisfazer verdadeiramente.
Imaginemos pois este sistema alternativo de tomada de decisão:
- É criada uma rede interna, à escala nacional, com terminais em todas as juntas de freguesia, onde cada eleitor poderá aceder, arbitrariamente, identificando-se com o seu número de contribuinte e uma palavra passe, tal como na declaração de finanças. O sistema efectuará imediatamente uma filtragem e identificará se este número de contribuinte corresponde a um cidadão elegível para votar. Neste sistema existirá uma bolsa de propostas (nacionais, distritais e locais) a que o sistema, em função do seu domicílio fiscal, lhe permitirá aceder. Assim, um cidadão residente em Almodôvar, maior e vacinado, poderá pronunciar-se sobre decisões nacionais, do distrito de Beja e ainda decisões do seu concelho, estando-lhe vedadas quaisquer outras decisões distritais ou concelhias.
Poderíamos assim sentir que o futuro realmente nos pertencia, que ninguém decidiria por nós a construção de auto-estradas paralelas, que distam nalguns troços menos de cinco quilómetros entre si, quando todo o restante país se vai cada vez mais isolando; se seria a decisão da maioria o definhamento da rede ferroviária nacional e, em contrapartida, o endividamento de várias gerações num comboio um pouco mais rápido que os demais e que ligue duas cidades apenas, ou se a maioria aceitaria que o litoral fosse literalmente "assaltado" pela pressão imobiliária desvairada, para citar alguns exemplos desgarrados.
É certo que muitas vozes se levantarão contra tal ideia.
Que é insustentável referendar todas as decisões. Que as pessoas não são tecnicamente competentes para decidir (mas são tecnicamente competentes para avaliar e comparar programas de governo...). Que retira autonomia aos governantes.
Todos estes argumentos aparecerão se a condição primária - o desinteresse, estiver ausente, pois colidirá com um projecto pessoal de usufruto individual à custa do domínio público.
E é muito importante perceber a importância da consciência e inteligência colectiva no processo de decisão. Múltiplos exemplos dizem-nos que, face a um problema específico, a globalidade das respostas de um conjunto heterogéneo de indivíduos (ainda que não especialistas na matéria), tendem a ser as mais acertadas. E ainda que possa ser cientificamente refutável esta última afirmação, será muito mais justa e inatacável, pois cada um terá tido a oportunidade de dar, à sua escala, um contributo para o destino a dar à sua Nação.
O único senão seria a extinção da tão portuguesa personagem "Velho do Restelo", pois ninguém se poderia queixar de decisões por si (maioria) tomadas.

Um abraço,

Afonso Gaiolas

P.S. - A maior felicidade do conselho familiar consiste na constatação da sua perpetuação. Parabéns Ana, parabéns António.
P.S. 2 - Dois tracinhos para o Pai Afonso... Estou a tentar apanhar o Avô e o Pedro (... e vão mais dois, diz o Alexandre enquanto aponta!!)