domingo, janeiro 08, 2012

"Grève"

Em que tipo de pessoa me torno quando, para que possa chantagear alguém ou alguma entidade, me sirvo de terceiros, que não hesito em molestar, se isso servir os meus interesses pessoais primários de obtenção de alguma vantagem física ou negocial?
E que género de sociedade sustenta os direitos adquiridos que advêm de tamanha crueldade, de ambos os lados da "vedação"?
Apresento-vos hoje a minha visão daquilo a que se convencionou denominar greve.
A greve, na sua génese, francófona e já há muito bicentenária, serviu para limitar a selvajaria da exploração da classe operária pela ganância lucrativa de empresários sem escrúpulos, que ainda nostalgicamente clamavam pelos períodos áureos da mui conveniente e simpática escravatura.
Em duzentos anos de evolução cognitiva, mais do que uma revolução social, houve um avanço civilizacional que levou a que o respeito pela individualidade humana conduzisse a um bem estar social sem paralelo na História da civilização ocidental.
À custa de quantos outros povos, e de quanto malabarismo financeiro?
A resposta a esta muito complexa mas relevante pergunta é demasiado importante para que a apresente como um subproduto deste tema e, por esta razão, ficará sem reflexão imediata...
Ainda que muito advoguem injustiças e atropelos à legislação laboral vigente, todos concordamos que existe hoje uma proteção  aos trabalhadores que nunca existiu no passado, vertida em, nada mais nada menos, que sete artigos da Constituição da República Portuguesa.
Assim sendo, em que instrumento se transformou a greve?
Essencialmente, em arma de arremesso de relativização do lugar hierárquico de cada corporação na sociedade. 
Só assim se explica que, passadas quase quatro décadas desde a revolução de Abril, tenham sido as classes que mais ergueram a voz, tomaram posições de força, paralisaram repetidas vezes a sua atividade (com mais ou menos prejuízo para a população em geral) e reclamaram junto do poder político, as que conseguiram mais dividendos financeiros (e, infelizmente, consequentemente, sociais) para os seus membros. 
Não me proponho avaliar a importância relativa de um médico (ou senhor doutor... engano-me sempre...), de um maquinista, de um professor, de um piloto da aviação civil, ou de um bombeiro no tecido social de um país.
Nem tão pouco as remunerações que auferem, pois já o fiz em artigos anteriores. 
Incomoda-me sim a leviandade com que se maltrata todo um povo que se tem que sujeitar aos caprichos de uma corporação ou, em casos verdadeiramente abomináveis, a ameaça camuflada a toda a população como forma de pressão à classe decisora para que obtenham dividendos sectoriais.
Num mundo justo, com decisores íntegros, a preocupação social com aqueles que de si dependem seria uma extensão natural de todo o modelo laboral, bem como a proporcional (não disse equitativa) distribuição dos resultados do trabalho bem desempenhado ao longo do tempo.
Num mundo perverso, os empregadores extorquem, em unidades de trabalho, os seus empregados, guardando para si os êxitos e castigando financeiramente este últimos pelos fracassos, responsabilizando-os exclusivamente pela sua ocorrência.
Soares dos Santos dizia ontem, em entrevista a uma cadeia de televisão generalista, que o modelo de negócio que mais confiança lhe dá é o modelo familiar. Não me surpreeende. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a sua empresa é o espelho do sucesso daquilo que defende. Em segundo lugar, porque só com este tipo de laços se pode criar a empatia necessária à vitória da justiça relativa sobre a ganância.
(Ainda assim, no momento em que colocamos acionistas incógnitos na equação, fixados na maximização do lucro sem olhar a meios... podemos correr o risco de desvirtuar este paradigma!)
Seria pois natural, num mundo razoavelmente justo, que os trabalhadores confiassem que os seus decisores tudo fazem para que a sua situação laboral seja a melhor possível. E, no caso estatal, que os portugueses escolhessem para decisores aqueles que lhes dessem garantias de manutenção da justiça relativa.
O que não é aceitável é que esses mesmos portugueses, que reclamam justiça social na hora de eleger, esbracejem depois para se elevar financeiramente, em relação aos demais setores da sociedade portuguesa. Não é aceitável que, graças ao advento da especialização profissional, se explorem as fragilidades de todo o grupo com a ameaça de não execução da tarefa específica que só a alguns foi confiada. Neste capítulo tanta importância têm os médicos de uma cidade, como os indivíduos responsáveis pela recolha de lixo nessa mesma localidade, como os motoristas dos transportes públicos. Todos podem paralisar a sociedade, com prejuízos globais incalculáveis.
Podem, mas não é legítimo que o façam.
E por não ser legítimo, por ser tão importante o papel que representam, chegou-se à conclusão que algumas profissões não teriam o direito de o fazer.
Concordo inteiramente com esta aproximação. Faço parte de uma das profissões que nunca fará greve, e que jamais necessitará que alguns parágrafos legislativos lhe lembrem esta responsabilidade. Confio que todos, cumprindo o papel para o qual foram corretamente eleitos/escolhidos, tomarão as melhores decisões no sentido do bem-estar global. Que a sociedade é tanto melhor, quanto menor for a pressão imposta para que existam discriminações (positivas ou negativas). Que boas ações, inexoravelmente, proporcionam boas reações. E que tanto melhor será o governo quanto melhores forem os seus cidadãos.
Considero, no entanto, absolutamente imoral, inaceitável e desrespeitoso para todos os lusitanos, que os responsáveis políticos cedam à chantagem laboral de alguns grupos sociais mal-intencionados (porque necessária à perpetuação do seu próprio ciclo de poder), e com essa ação, desvirtuem o valor relativo das profissões na sociedade, minando a coesão de toda a Nação.
É tempo de as pessoas perceberem que a luta de uma classe prejudica todas as outras. E que cada vitória sectorial obtida pela chantagem (grevista ou qualquer outra), implica a derrota de todos os restantes portugueses.
Portugal, ou somos todos, ou não somos!

Um abraço,

Afonso Gaiolas