segunda-feira, março 12, 2007

Crónicas do Árctico

Esta é a terceira experiência Norueguesa, mas a primeira acima do círculo polar Árctico. Não sei se reflexo da mística que o nome acarreta, mas a verdade é que todas as sensações e experiências parecem subjugadas à influência dessa palavra.
Vim por duas semanas. Vim sozinho, acompanhado por uma multidão. Vim para voar…
Recordo-me quando, ainda tenente, se constava que teríamos possivelmente exercícios na Noruega, e eu pensava… que longe, que frio… tudo me parecia tão distante e improvável. A adaptabilidade foi realmente a característica que nos fez chegarmos onde estamos hoje. Vendo a naturalidade com que tudo se processa, nas mais extremas condições, por pessoas que tomaram o sinal negativo da escala de Celsius por companheiro, tornamo-nos mais flexíveis e tornamos exequível o que parecia à partida muito para além dos limites do razoável.
O voo no Árctico é, para além de tudo o que poderá ser dito ou romanceado… extravagantemente bonito! Mas também aqui me parece jogar o factor de excepcionalidade nos olhos de quem avalia. Um viking aviador provavelmente dirá… “Pois, pois, montanhas, fiordes e glaciares… iguais aos que toda a vida galguei… para cima e para baixo, atrás de um qualquer alce mais teimoso que gentilmente me não quisesse ceder os seus galhos!”. Sendo certo que a monotonia pode levar à letargia dos sentidos, ilustrada na incapacidade da maioria residente em reconhecer a suprema beleza da melodiosa ondulação de uma seara, ao ritmo da brisa vespertina, no eterno instante que antecede o chamamento da nossa mãe para jantar, existem sensações que nunca passarão de moda no nosso Eu, quer seja a hipnotizante feitiçaria que o Sol nos oferece na sua (também nossa) aurora boreal, ou a fotografia que escolhemos para ambiente de fundo do nosso computador, se isso significar a nossa vida resumida num agregado de fotões em formato ISO400.
Mas, lamentando a decepção aos defensores dos “hollywoodescos” ases pelos ares, de sorriso e penteado preparados para a câmara, devidamente adornados pela máscara de oxigénio que fica muito bem, mas apenas para a fotografia… o voo militar do século XXI tornou-se de tal maneira complexo, que são pouquíssimas as ocasiões em que a expressão “deixa-me agora ir eu à janela um bocadinho” se possa verdadeiramente aplicar. Não me interpretem mal, podem e devem continuar a roer-se por dentro até ao fim dos vossos dias, porque o melhor emprego do mundo não é pertença do senhor Ronaldo de Assis Moreira ou mesmo do nosso “Hosé” Mourinho. É de um punhado de gente, mais ou menos normal (talvez com um ego ligeiramente dilatado), que pela dedicação, perfeccionismo e treino exaustivo tenta que a carga dissuasora que a imagem de tão forte oponente provoca, sirva para, silenciosamente, proteger a imensa família a que cada um pertence, sejam as suas cores verde e vermelha, ou uma mescla de quaisquer outras. Podem-se questionar os ideais mais ou menos belicistas de uma determinada nação, ou conjunto delas… mas não se questionem nunca os valores daqueles que juraram (no verdadeiro sentido da palavra, e não no sopro oco que se costuma hoje vãmente bradar) colocar os interesses do colectivo à frente da vontade individual, ainda que isso pudesse significar a perda do seu bem supremo…

Sinto que o frio enrijece tanto o corpo como espírito nestas latitudes. Apercebo-me que a rudeza, que não deve ser confundida com má educação (por ser a deles), se entranhou na sociedade, sendo vulgar que um viking, ao cruzar-se acidentalmente com um qualquer português, sempre na iminência de uma queda aparatosa na rua gelada, pela mesma razão que não se desculpará perante um poste se acidentalmente lhe der uma traulitada (estava-me mesmo a apetecer escrever esta palavra… tem qualquer coisa dos velhos tempos que me faz ter vontade de a pronunciar), assim continuará impávido e sereno se esbarrar com o aventureiro protagonista do musical “Disney on Ice”, no papel de Pateta.
Existe um encanto nesta agrestia, de casas isoladas na neve, de crianças a esquiar e pais sem receio de traumatismos cranianos, de pescadores nas águas geladas, em cascas de noz há muito caídas da árvore que as viu nascer, de aldeias em ilhas onde até o mais bravo dos animais polares teria receio de se estabelecer, de vontade de mostrar que a determinação é a maior das armas contra as adversidades de um clima que teimou, durante tantos séculos, em fustigar todos os recantos de todos os fiordes deste imenso lugar (soa por aí que começa agora a mudar...).
A verdade, no entanto, é que, quanto mais viajamos, quanto mais nos deslumbramos perante o desmesuradamente belo mundo em que vivemos, mais nos apercebemos da excepcionalidade das nossas origens, dos lugares a que nos acostumámos apelidar de nossos, e sobretudo das pessoas de quem dependemos e que dependem de nós, daqueles que sabemos que nos amam sem nunca precisarem de o ter dito, e daqueles que amamos sem nunca o termos chegado a anunciar!

Para ti, avó,

Afonso