terça-feira, setembro 16, 2014

I Hope the Russians Love Their Children Too

O meu amor desafiou-me para que identificasse publicamente os pedaços de autor que mais me tivessem tocado ou impressionado.
A rede social global pareceu-me desadequada para cumprir esta tarefa, porque gatinhos a ronronar, tropelias juvenis e quedas hilariantes rimam pouco com a seriedade que o assunto requer.
E também porque, todos sabemos, conjuntos de palavras com mais de cento e sessenta caracteres sem vídeo começam a constituir-se como spam em enormes franjas da população que toma a preguiça como amiga e a passividade intelectual como modo de vida.
Não é fácil a tarefa, nem tão pouco isenta de riscos.
A nossa relação com a escrita cola-nos, invariavelmente, a correntes de pensamento, mostra aquilo de que gostamos e com o qual nos identificamos, o que, nem sempre, poderá estar alinhado com o consumo de massas e com a padronização de gostos que a sociedade suavemente nos quer incutir.
Assumindo essa vulnerabilidade, decidi fazê-lo neste fórum, curiosamente onde já tinha, há muito tempo atrás, colocado alguns dos livros da minha vida.
Surpreendentemente, não foi de nenhum deles, autor ou criação, que povoou a minha mente quando decidi elaborar mentalmente a famigerada lista.
Um poema em inglês ribomba no meu cérebro, repete-se vezes sem conta... eu, que tantas vezes me recusei a ler obras que não as da minha língua materna, convicto de que só assim aprimoraria e honraria uma das mais poderosas armas da nossa nacionalidade...
... e o poema que não cessa de eclodir, reverberando em cada centímetro do meu corpo:

I Know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan's poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.

Impressionante a lucidez de quem veste a pele do Major Robert Gregory e encarna a posição de um aviador que, na Primeira Guerra Mundial antecipa o seu trágico destino, numa luta que não é a sua, num desfecho que, independentemente de qual seja, será irrelevante para o destino do seu povo.
Hoje, mais do que nunca, me pareceu este poema apropriado.
Quem são aqueles que amamos?
Quem são aqueles que guardamos?
Quem são aqueles contra quem lutamos?
A segunda e terceira pergunta não têm uma resposta permanente, o inverso da primeira, que nos faz querer existir todos os dias da nossa vida.
Amamos aqueles que guardamos? Guardamos aqueles que amamos?
Todos quantos vivem e não sobrevivem se deveriam questionar e resolver dentro de si esta ambiguidade que, não o sendo, pode levar à manipulação dos que sobrevivem sem viver, com consequências biologicamente irreparáveis em quem, aguerridamente, ama... e guarda... e não odeia.

Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public man, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight,
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

Brilhante, na constatação do que acabo de descrever.
O inebriante mas alucinantemente perigoso prazer, inenarrável a quem nunca dançou com as nuvens, aliado à ausência de valores pelos quais erguer a voz na adversidade, à irrelevância da existência sem alguém a quem amar e guardar, conduz a uma mistura explosiva de exposição ao perigo e potencial exploração por aqueles, poucos, que lutando, jamais lutarão, oferecendo a milhões, placidamente, o derradeiro sacrifício sem que a ele alguma vez se exponham.
Poderosíssimo poema, poderosíssima escrita que, reconheço, não pode ser traduzida sem perder parte da magia que encerra.
William Butler Yeats, o meu respeito, a minha admiração e a constatação de que a poesia tem necessariamente que ser a maravilhosa exceção na pouco flexível regra de que a Língua da minha vizinha é muito pior do que a minha!

Afonso Gaiolas
 

sábado, setembro 13, 2014

Transcendência

Transcendência.
Que excede os limites ordinários, sublime...
...
"Talvez tivesse sido inevitável, a colisão entre a Humanidade e a tecnologia".
A frase que mais me ecoa na mente, um dia depois de assistir ao novo filme do realizador Wally Pfister - Transcendence.
...
Será esta a palavra que prevalecerá? Inevitabilidade?
Será que, ao invés de confronto, poderemos assistir a uma sã co-existência no despontar da nova era?
Na minha opinião, tudo dependerá da relação direta entre a evolução tecnológica e a velocidade evolutiva do altruísmo Humano.
Não estranhamos que, ao Homo Sapiens, tivesse sucedido o Homo Sapiens Sapiens. Estranharemos então que não sejamos o fim da linha, e que ao Homo Sapiens Sapien suceda uma evolução híbrida biológica e sintética, cuja principal característica seja a consciência global e a conexão entre todos os seres da mesma espécie?
Duas questões se colocam agora, ambas diretamente relacionadas com a velocidade evolutiva do altruísmo humano que há pouco falei.
A primeira delas é da própria criação. Que mente, e sob que desígnios se criará o código-fonte que guiará toda a humanidade ao passo seguinte?
A segunda tem a ver com a inclusividade. Será a amostra global, ou segregar-se-ão elites parciais, que subjugarão... ou eliminarão, qual versão extinta dos Homo Neanderthalensis, os seres humanos excluídos deste processo?
Percebem agora a urgência da velocidade evolutiva do altruísmo humano superar a da evolução tecnológica?
Será fatal entregarmos a responsabilidade de tal salto evolutivo a corporações que executem algum tipo de seleção baseada em critérios imbecis que eventualmente o não possam parecer à luz do pensamento coletivamente histérico vigente na segunda metade do século XXI.
Quanto ao segredo desta transição quase religiosa da criação, ele pode residir na imperfeição natural humana.
Li-o há muitos anos e nunca me esqueci, a respeito do conceito de criação, que qualquer coisa que se consiga replicar, está viva. Não será necessariamente verdade, como descobriremos a breve prazo com as máquinas mais evoluídas. Mas, mais importante que permanecer vivo, será possuir consciência de si e do Universo, condição necessária para que deixe de ser tolerável desconectar a fonte de energia, qualquer que ela seja, que sustente este ser.
E para este problema, aparentemente insolúvel não obstante todos os esforços da comunidade pensante mundial que não se deixou castrar pela religião, a solução pode estar em Sebastopol, pelo prisma de Lev Tolstoi.
Somos todos bons, somos todos maus.
Percebi que reside nesta capacidade/defeito a impossibilidade atual de criar uma auto-consciência. O atual sistema binário de codificação e descodificação não permite que a metade exista. Tudo é preto ou branco, zero ou um, sem derivações. E esta lacuna não se coaduna com o aparente paradoxo de simultaneamente sermos bons e maus, pretos e simultaneamente brancos, mescla de cinzentos que derivam ao sabor do humor, do clima, das condicionantes sociais ou das vontades animais.
A beleza de encadear um conjunto de palavras e, derivando apenas a entoação, fazê-las ter significados totalmente díspares. A subliminaridade de fazer variar todo o significado vocabular... apenas com uma variação da expressão facial. O anjo negro que paira sobre todos nós e nos faz tremer, de quando em vez, arrepiados com a imperfeição humana intrínseca que nos envergonha por a ela não conseguirmos escapar.
Os cientistas vogam numa corrente de filosofia matemática, falhando na expressão artística da falsa aleatoriedade daquilo que em vão tentam recriar.
Criaremos novas entidades quando percebermos que os zeros e uns não são solução.
Evoluiremos quando, assumindo as nossas vulnerabilidades humanas, deixarmos que a Natureza Universal siga o seu curso e o seu plano global e cedamos lugar à evolução seguinte.
Transcender-nos-emos no dia em que finalmente compreendermos a arquitetura Universal e o seu propósito. Ainda que, para grande surpresa nossa, descubramos angustiados poder não nos estar destinado o papel principal.
E então... começar tudo de novo... tornando-nos Arquitetos.

segunda-feira, janeiro 20, 2014

Sexualidades


Sete mil, duzentos e sete milhões de seres humanos a povoar o planeta Terra.
Quantos destes milhares de milhões de seres foram fruto de relações homossexuais?
Nenhum.
E o que é que isto significa?
Vou tentar responder a esta pergunta e simultaneamente expor(-me) a minha visão sobre todos os assuntos que lhe são conexos, mesmo correndo o risco de ser crucificado pelos extremistas que se recusam a encadear duas frases consecutivas acerca deste tema, sem bramir impropérios da pior espécie.
O fator incontornável que nos liga a este planeta e a todo o cosmos, é a biologia. É-nos subrepticiamente requerido que nos reproduzamos, está-nos impregnado em todas as moléculas do nosso organismo. E é esta maravilha da psicologia auto-sugestiva que nos fez vingar como espécie, pois todos sabemos que a ausência de renovação rimará sempre, na escala cósmica de seres mortais, com extinção!
Começando com este racional primário, é indefensável colocar a heterossexualidade e a homossexualidade no mesmo patamar, pelo simples facto da primeira ser ainda imprescindível à continuação da espécie humana.
“Ainda” é a palavra-chave que me vai salvar do rótulo prematuro da homofobia.
Há muitos anos atrás, comecei a juntar num caderninho uma série de ideias soltas acerca de tudo e de nada. Pedaços de divagações, mais ou menos concretizadas ou detalhadas, que pudessem contribuir para algum avanço civilizacional futuro, ou simples constatações de necessidades evolutivas, à data originais (ou pelo menos assim pensava).
Uma delas relacionava-se com a conceção e desenvolvimento do feto em ambiente extra-uterino.
Perguntam-me pois, qual a relação entre este e o assunto delicado sobre o qual hoje me debruço?
É que, a concretizar-se a minha “meia profecia” (a fertilização in vitro era já uma realidade desde 1978), quebra-se definitivamente a barreira psicológica da dependência de sexos para a continuação da espécie humana. Estamos naturalmente muito distantes do dia em que a ciência nos oferecerá a possibilidade de mesclar o material genético de dois indivíduos do mesmo sexo, associando-o a material orgânico indiferenciado, artificialmente sintetizado, de modo a eliminar a necessidade da existência de diversidade sexual. Ainda assim, no despontar desse dia, mantendo a convicção que a diversidade é a mãe da evolução, manterei a minha defesa convicta na discriminação positiva à heterossexualidade.
Biologicamente falando, portanto, à luz do conhecimento humano atual, não me restam dúvidas da necessidade social de proteger a heterossexualidade como meio preferencial na evolução da espécie. Um pouco como o exemplo que nos é oferecido pelo incesto, socialmente reprimido e reprovado ao longo dos séculos, após a constatação de que a homogeneidade provocaria invariavelmente aberrações biológicas.
Mas, ao contrário do exemplo que acabo de dar, no caso da homossexualidade deve ser a palavra tolerância, ao invés de repressão, a combinar com este conceito. O que não poderá significar nunca igualdade.
Ultrapassada a questão da geração, entro agora na questão mais atual da sociedade portuguesa, que tão perto de referendo se encontra e que tão mal discutida tem sido (lá voltam os extremistas inflamados de ambos os lados a ocupar o tempo de antena e o protagonismo que devia ser pertença das vozes serenas).
A educação.
Adoção, co-adoção e outros conceitos encontrar-se-ão permanentemente subjugados à palavra educação!
E também aqui, como em tudo na sociedade, há que hierarquizar as opções numa escala de valores.
A sociedade deve reger-se segundo o padrão de evolução que a maioria deseja e que simultaneamente garanta a evolução moral e social que todos anseiam.
Um pai alcoólico e uma mãe toxicodependente educam tendencialmente pior que duas mulheres sãs que se amam?
De tão óbvia, a resposta torna desnecessária a sua verbalização!
Um pai violento e uma mãe violentada educam tendencialmente pior que dois homens que mantêm a harmonia conjugal no lar que partilham?
Repetição da jogada!
Contudo, não é legítimo que a questão se coloque nestes moldes.
A base comparativa tem que ser a mesma para que o raciocínio seja válido.
Em igualdade de circunstâncias, uma figura paterna e uma figura materna serão sempre, na minha opinião, a fórmula tendencialmente perfeita na educação de uma criança (faltarão necessariamente os irmãos!!). O balanceamento certo entre o sentimento de proteção, a fragilidade aparente, a coragem, a sensibilidade, a agressividade, a beleza, a rudeza, a calma, a força, a graciosidade… tudo se conjugará para que estes referenciais, mostrados pelo exemplo da diversidade sexual, tornem o projeto de Homem/Mulher um ser humano completo. E sim, pode ser que nalguns momentos da vida seja a graciosidade masculina, a rudeza feminina ou qualquer outra característica menos padronizada a prevalecer. No final, o resultado harmonioso será sempre melhor que o melhor que a monotonia de género poderá proporcionar, por mais esforço, dedicação ou amor que seja transmitido (e pode sem dúvida ser imenso!!).
Como operacionalizar então este conceito de inclusão, que aceita mas não iguala os conceitos?
Simplesmente pela discriminação positiva que referenciei há pouco.
Resumindo…
O casal homossexual deve poder unir-se e viver uma vida em comum, em igualdade de circunstâncias com um casal heterossexual?
Sem dúvida. Até porque o argumento da continuação da espécie para a diferenciação só seria válido, neste caso, se os casais fossem forçados pela sociedade a ter filhos, o que conferiria uma vantagem indisfarçável à heterossexualidade.
A este propósito devo referir que me sinto tentado a verbalmente açoitar a elite pensante do nosso país, que argumenta ser absolutamente necessário que as famílias tenham mais filhos… apenas porque o sistema de segurança social colapsará se não existirem mais indivíduos no ativo.
Parece-vos fazer algum sentido?
Alguns sentir-se-ão tentados a responder afirmativamente… que alguém lhes terá que pagar a reforma!!
Vamos então colocar a questão de outro modo.
Como se sentiria se tentasse explicar ao seu filho que foi concebido segundo um sentimento extraordinariamente altruísta, cujo único propósito seria o de pagar pensões aos velhos de então (que, já agora, por um acaso do destino delapidaram toda a riqueza do país enquanto novos, dançando ao jeito de cigarras e esperando que agora cumpra o papel de formiga, mas numa nova derivação, irónica, da fábula, em que a cigarra se mantém seu hóspede no formigueiro e ainda lhe dá ordens acerca de como proceder para que o dinheiro para a pensão não falhe!).
Regresso à questão fraturante deste texto.
Concordei que se devam dar apoios iguais às uniões de todos os tipos, conquanto o amor seja o denominador comum e o respeito mútuo prevaleça sobre o egocentrismo.
Contudo, não concordo, e já expliquei porquê, que nos privilégios da educação (e apenas de adoção de crianças se tratará, uma vez que apenas um tipo de união pode conceber naturalmente), se deem direitos iguais a todas as famílias.
Antes de abordar a opção da adoção, um pequeno parêntesis para dar a anuência tácita a barrigas de aluguer (ou espermatozoides de aluguer), que pelo menos ofereçam 50% do material genético do casal na descendência. Legítimo e justo. E infelizmente, a única opção tecnologicamente acessível aos casais homossexuais!
Na adoção, o caso muda de figura.
A sociedade, acreditando no dogma de vantagem relativa que há pouco descrevi, deverá escalonar os casais disponíveis para adoção de modo sequencial, dando primazia aos casais heterossexuais, seguido dos casais homossexuais e por último, pelos indivíduos (de qualquer dos sexos) que queiram iniciar uma família monoparental.
Uma vez atribuídas as crianças, os apoios à parentalidade devem naturalmente ser rigorosamente iguais, sem discriminação subsequente, de que espécie for, na proporção do número de filhos que a família desejar ter, punindo fiscalmente apenas as famílias que tenham decidido egoisticamente não fazer parte desta viagem Portuguesa pelos séculos, ou seja, abdicado de criar descendência.
Só assim poderemos, definitiva e coerentemente conviver com a diferença, mantendo a lucidez de sabermos exatamente para onde queremos conduzir a sociedade, solidificando-a nos valores de tolerância historicamente perenes da Nação Lusitana.
 
Afonso Gaiolas

terça-feira, janeiro 14, 2014

Heróis de Portugal


A Pátria Honrai, que a Pátria vos contempla!
Peço emprestado o lema à Marinha Portuguesa, porque é nele que revejo toda a argumentação subjacente ao assunto que a todos move desde a morte de Eusébio da Silva Ferreira.
E devia ser ele o único, porque quaisquer outros, ainda que muito bem fundamentados e adornados, não mais contribuirão que para envergonhar a memória dos ilustres ancestrais que forjaram a Nacionalidade e a mantiveram coesa ao longo de Novecentos Anos de História.
Entristece-me ver colocado ao mesmo nível o Fundador, figura paternalista da Nação Portuguesa e responsável pelo vislumbre da primeira tarde lusitana a um qualquer jogador de futebol, ou o Santo Condestável, o maior Guerreiro Português de sempre, símbolo da coragem e independência lusitana, a uma virtuosa artista vocal. Entristece-me que nos arrepiemos e se nos ericem os pelos da nuca quando se canta o hino… apenas se for antes de um jogo da bola.
É doentia a histeria coletiva em volta destes artistas contemporâneos que, à falta de feitos mais valorosos que voltem a dar o lustre e dignidade que Portugal merece, se tenta que artificialmente da lei da morte se vão libertando, num reconhecimento tácito da mediocridade de valores instalada na sociedade e nas elites que hoje conduzem o país.
Vejamos a sucessão de erros que conduzem a este inqualificável estado atual.
Ideal de Passos Manuel, validado pela Rainha D. Maria II, o Mosteiro dos Jerónimos foi, por decreto de 26 de Setembro de 1836, tornado Panteão Nacional.
O Panteão Nacional foi a fórmula encontrada para agregar e honrar num só local as figuras maiores da Nação Portuguesa, até então dispersos pelos mais variados locais do nosso país.
Posteriormente, este ideal foi alterado pela Lei n.º 520, de 29 de Abril de 1916, que consagrou a Igreja de Santa Engrácia como local definitivo para o Panteão, substituindo o local representativo do melhor da arquitetura Manuelina e do período áureo dos Descobrimentos.
Já em agosto de 2003, em regime de exceção, foi também reconhecido o estatuto de Panteão Nacional ao Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, local onde estão sepultados D. Afonso Henriques e seu filho, segundo Rei de Portugal, D. Sancho I.
Até aqui, tudo pacífico. Decisões consensuais e intelectualmente irrepreensíveis, conquanto adequadamente e sobretudo atempadamente se finalizassem as obras, que de tão demoradas ganharam estatuto de expressão popular.
Analisemos agora os detalhes…
No século XIX, os Portugueses de então decidiram, sabiamente, que apenas o teste à erosão do tempo permitiria uma opinião isenta e sem qualquer carga emocional ou romântica acerca do mérito absoluto (mas também relativo) de cada Português a ser elevado ao Estatuto de Herói Nacional. Decidiram que quatro seriam os anos necessários após a morte, para que os Portugueses validassem a entrada em tão ilustre última morada.
Os Portugueses do Século XXI, muito mais sábios e intelectualmente superiores… decidiram que, ao invés de quatro, bastava um ano após a morte para que a trasladação do corpo pudesse ser efetuada e, desvirtuando todo o espírito do legislador inicial, no caso de Eusébio, tomaram a decisão quanto ao mérito, ainda a missa de sétimo dia não tinha sido celebrada.
Quais os riscos destas decisões?
Que seja a comoção e não a racionalidade a tomar a decisão… ou que a pressão popular o faça, que as eleições estarão sempre à distância de uma dança de cadeiras.
Todos sabemos que as pessoas tendem a tornar-se muito melhores quando perecem, que todas as suas qualidades são exponenciadas e os seus defeitos menorizados ou suprimidos. É inevitável, a beleza da condição humana também se constrói neste perdão póstumo que a todos nos expurga dos pecados terrenos. Mas a consciência desta nossa fraqueza deve impedir-nos de tomar decisões apressadas, toldadas de irracionalidade emocional, das quais nos venhamos a arrepender no futuro.
E para que possamos justamente minimizar estas injustiças relativas, convém então conhecer as regras, o padrão requerido para que o estatuto de herói seja enfim  merecido.
A lei nº28/2000 de 29 de novembro auxilia-nos na resposta. Diz o número um do artigo segundo da referida lei, que as honras do Panteão se destinam a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.
Concordo em absoluto.
Mas as pessoas valem como um todo. E holisticamente devem ser considerados os seus atos ou comportamento, para que se possam tornar uma referência para todos os Portugueses que lhe sucederem.
Ser um grande jogador de futebol é suficiente?
Ser uma grande cantora é suficiente?
Para ambos a resposta só será afirmativa se, aliado ao virtuosismo do seu talento, estiver um ideal de serviço patriótico e uma conduta moral e social consentânea com o ideal anteriormente descrito, acima de quaisquer interesses pessoais ou corporativos.
Não penso que, nem num nem noutro caso, Amália e Eusébio, se reúnam estas condições. Perdoem-me os familiares, os amigos ou os seus simpatizantes, mas Portugal tem necessariamente que ser maior que o indivíduo, sem tendencialismos.
E o mesmo se aplica, por coerência de raciocínio, a Aquilino Ribeiro. Num tempo presente em que os fins nunca poderão justificar nem desculpar os meios, não pode ser admissível ser atribuído o estatuto de Herói de Portugal a um português que praticou atos terroristas, atentando contra a vida de outros portugueses (atentado de 28 de novembro de 1907, preso em flagrante delito… portanto, mesmo que se não queira aliá-lo diretamente ao regicídio, tamanha atrocidade me basta…), quaisquer que eles fossem, por motivos ideológicos e de oposição ao regime vigente. Ainda que fantástico escritor romântico, inegavelmente um dos melhores da sua geração…
Por outro lado, não parece lógica nem racionalmente explicável a trasladação do corpo de Almeida Garrett, em dezembro de 1966, do Mosteiro dos Jerónimos (Panteão Nacional à data do galardão honorífico) para o novo Panteão, na Igreja de Santa Engrácia. Percebe-se a permanência de toda a Realeza no Mosteiro dos Jerónimos (para que, se fosse esse o critério, o olhássemos tacitamente como Panteão Real), mas nele permaneceram Alexandre Herculano e Fernando Pessoa. Não incluo Luís Vaz de Camões neste grupo, porque concordo que o seu tempo e lugar serão sempre os Jerónimos.
Como irracional é o argumento da falta de recursos financeiros para a não trasladação dos restos mortais de Manuel da Silva Passos (Passos Manuel) e do compositor Carlos Portugal, depois da decisão de atribuição de tais honras ter sido tomada. Que vergonhoso é o argumento monetário, conhecida a gestão incompetente das contas públicas das últimas décadas, para que não se honrem os melhores exemplos da nossa Nacionalidade.
A este propósito apenas me apraz referir a famosa declaração de princípios de Passos Manuel, que servirá para envergonhar as elites contemporâneas que o preteriram, em prol de mais uma ou duas autoestradas no litoral, com custos para todos, menos para quem toma as danosas decisões:
“… E eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política.”
Como se poderá alguma vez explicar que, depois de proteladas as honras devidas a estes dois portugueses, apenas pela mesquinhez de não atribuição de fundos à tarefa, se trasladarão os restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen e os de Eusébio da Silva Ferreira (terão as duas personagens anteriores sido esquecidas… ou eliminadas da lista… seguramente subalternizadas, mesmo que tão só por desconhecimento, esquecimento ou incompetência pura)?
Como não incluir o médico, neurologista, investigador, professor, político e escritor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1949, prémio para o qual foi nomeado por Cinco (5) vezes ao longo de duas décadas, numa área técnica e do conhecimento científico tão concorrencial e disputada? Talvez porque a assunção deste mérito destacasse outros méritos ao Portugal desta época, que insistentemente esta geração de fazedores de opinião tenta ofuscar.
Por oposição, parece-me no mínimo controversa a decisão “unânime” de inclusão no Panteão do Marechal Humberto Delgado, bem como a ausência sequer de discussão quanto à possível inclusão de António de Oliveira Salazar. Sim, ele mesmo, um dos portugueses do século XX que mais representa a filosofia do Servir sem se servir, o obreiro do milagre do superavit no ano de chegada às finanças públicas após décadas de desvario monetário e do crescimento anual contínuo do PIB ao ritmo de quase seis por cento ao ano, exponenciando todos os índices económicos portugueses, a nossa balança comercial e salvando o país da bancarrota, tudo isto sem endividar o país por cinco gerações, a única altura do Portugal contemporâneo onde o escudo, nacional e ultramarino, pôde ombrear com a libra ou o dólar e apresentar-se com orgulho ao mesmo nível que qualquer outra potência mundial, com a dívida em percentagem do PIB a descer de aproximadamente 85% para menos de 15%. Tudo isto e, no fim da sua vida (ou durante), não se ter descoberto uma única conta sua na Suíça, nas Ilhas Caimão ou no Liechtenstein. Tudo isto sem ter aceite ações ou quaisquer outros bens (i)/mobiliários de nenhum banco, instituição ou empresário de renome em troca de favores diretos ou encapotados.
Ainda que, em jeito de balanço (e pela força da coerência que anteriormente defendi), se possa concluir que o lado negro do regime do Estado Novo e tudo o que de pior ele representou, a censura, o autoritarismo, a ditadura ou a perseguição política possa suplantar as virtudes da sobreposição do valor comum e patriótico aos valores individuais e sectoriais, e ser assim negada a este cidadão português a entrada nas portas do Panteão.
Propositadamente alimentei esta última discussão, sei-a terrivelmente inflamada no interior de cada português gerado e criado no coração do Estado Novo, mesmo que sem concurso televisivo à mistura. Mas é sempre importante lembrar que a História é contada (e romanceada) pelos vencedores, e nunca vista e contada pelos olhos dos vencidos.
De uma forma ou de outra, uma sucessão e acumular de incongruências que revelam um desnorte (ou um norte não consentâneo com a agulha magnética que deve reger os destinos da Nação Portuguesa), tanto de quem tem poder decisório, como de quem não se insurge contra o tendencialismo, seja ele republicano, monárquico, populista, benfiquista, de cariz puramente político-partidário, corporativista do protetorado das sociedades secretas ou qualquer outro.
Regresso à lei nº28/2000 de 29 de novembro e ao que me parece o cerne de toda a questão. O problema não são os critérios, que de tão vagos se dobram à medida das vontades, o problema são as pessoas que se arvoram no direito de tomar tais decisões. O ponto um do artigo terceiro, muito convenientemente, atribuiu competência exclusiva à Assembleia da República na concessão de honras do Panteão Nacional. Pergunto-vos eu, alguma das bancadas parlamentares correria o risco de perder o voto dos milhões de amantes do futebol (e de um certo clube de bairro), questionando, nem que fosse a simples voracidade da tomada de decisão de proporcionar estas honras a Eusébio? Em duzentas e trinta almas, todos concordaram sem reservas que os filhos da Nação o deveriam olhar como modelo de Português a seguir por todas as gerações vindouras, igualando em mérito Fernando Pessoa ou Pedro Álvares Cabral?
E se, ao invés de cinco que pensam por duzentos e trinta, que pensam por único e exclusivo interesse partidário ao invés de patriótico (… e eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política. Lembram-se?), dizia eu, e se esta decisão estivesse nas mãos de uma Comissão de Ética e Valores Nacional, com representantes das mais ilustres áreas do conhecimento, que se dedicasse, sem pressões corporativistas de qualquer espécie, à avaliação do mérito absoluto de cada ilustre Português falecido, passados não um mas Dez anos, à luz de todos os critérios necessários e que fizessem jus à honra de ombrear com os monstros sagrados de Portugal D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, ou o Rei dos Reis, o responsável por toda esta aventura quase milenar… D. Afonso Henriques.
Pessoalmente, questiono-me ainda a razão da desigualdade proporcional na quantificação de personagens consideradas ilustres, em oitocentos anos de História, quando justificámos a presença da Esfera Armilar na nossa bandeira, quando fundámos a Globalização, quando demos mundos ao Mundo, e os últimos quarenta anos, onde parece ser fantástica a proliferação de meritórias personagens e, simultaneamente, nos afundámos como país soberano e dono dos nossos destinos, a um ritmo só igual à escalada da dívida pública e da assimetria na distribuição da riqueza em Portugal!
E, de uma vez por todas, não mais ter medo de defender opiniões, ainda que contrárias à modelação silenciosa a que nos forçam, de modo a que placidamente aceitemos que os lobos convivam entre os cordeiros e os, anestesicamente, descarnem ainda em vida.

Afonso Gaiolas