segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Um interesse desinteressado

Nestes dias turbulentos, em que sistemas políticos caem à mesma velocidade a que sobem as décimas dos juros da nossa dívida pública, recuperei do meu baú de projectos utópicos, aquilo que penso ser a melhor alternativa aos sistemas políticos com que os gestores do mundo nos presenteiam nos dias de hoje.
Há muito tempo que defendo que os sistemas de gestão de seres vivos devem ser tanto mais inflexíveis e rígidos, quanto mais irracional e mal formada for a massa a gerir mas, por oposição, tanto mais abertos e flexíveis, quanto melhor for a formação, idoneidade e racionalidade dos mesmos indivíduos.
Veja-se o exemplo familiar, que espelha na perfeição esta teoria, e me evita assim a utilização de regimes políticos reais, sobre os quais não pretendo tecer quaisquer considerações.
Existe, no seio familiar, uma hierarquia muito bem definida, em que os pais são muito autoritários e rígidos, enquanto os seus filhos estão no processo imberbe de formação e aquisição de valores. Gradualmente, à medida que se assiste a um processo de solidificação da personalidade segundo os valores de humanidade e honorabilidade pelos quais é suposto um ser humano reger-se, os processos de gestão e decisão familiar tornam-se cada vez mais descentralizados e igualitários, num cenário em que as diferentes vozes serão cada vez mais tidas em consideração, na hora das decisões familiares. Este processo culminará na fase de criação de um conselho familiar, entidade não reconhecida oficialmente, mas que manterá o equilíbrio saudável deste grupo de indivíduos ao longo das décadas subsequentes.
A cada chegada de novos membros, segue-se novo processo de inserção, num movimento contínuo que tenderá para a perfeição, na medida em que cada indivíduo será melhor que o seu predecessor, por incorporar todas as lições aprendidas pelos seus antecedentes, mas também porque utilizará esses conhecimentos para melhorar o próprio sistema familiar em que se insere.
E qual o maravilhoso segredo do sucesso desta fórmula?
Desinteresse!
Não na vertente da palavra original ao qual foi acoplado o prefixo de negação, mas como sinónimo de generosidade e desapego.
É este o primeiro passo para o sucesso de qualquer sistema. Que os decisores sejam isentos e completamente despojados de interesses pessoais directos ou indirectos. Situação que apenas pode ser absolutamente pura no seio familiar, mas que pode tender para tal, se houver consciência de serviço colectivo, no desempenho dos cargos públicos de gestão.
Não existindo esta condição, surgirão as mais variadas e injustas razões para que este ou aquele sistema político colapse ou defraude os seus cidadãos. O que falha, na verdade, é a cabeça que gere os tentáculos do polvo, e não o polvo em si. O que não impede que o dito "animal" não esteja também em estado adiantado de decomposição corpórea, para além do identificado defeito cerebral.
Convençamo-nos então que o ponto primordial do caderno de encargos de um governante é a sua isenção, mais do que a genialidade e competência técnica, pois estas qualidades, ao serviço de causa própria, têm um potencial efeito destruidor superior à mais danosa das gestões incompetentes (ainda que avassaladoramente benéfica para as instituições bancárias da Suiça e das Ilhas Caimão).
Assumido este pressuposto, passemos à fase seguinte desta evolução política...
Acedemos hoje à nossa instituição bancária e gerimos o nosso dinheiro pela internet?
Preenchemos e validamos a nossa declaração de rendimentos anual pela internet?
Confiamos portanto que o sistema aberto da internet pode ser suficientemente seguro para nele executarmos transferências bancárias. O Estado confia que a internet é um meio suficientemente seguro para através dele comunicar e lidar com os cidadãos, no que ao pagamento dos seus impostos diz respeito! Mas o mesmo Estado que tão abertamente confia no sistema para que os cidadãos contribuam monetariamente para o seu financiamento através dos impostos, não se sente suficientemente confiante para que o processo de escolha dos seus representantes governativos seja sufragado por intermédio de uma votação numa rede segura (provavelmente será necessária uma intranet - fechada e portanto inatacável). E, apesar das maciças bofetadas de luva branca disfarçadas de abstencionismo, mantém a cabeça enterrada na areia, sustentado na convicção de que, em pleno mês de férias, toda a família oriunda de Bragança a gozar um merecido descanso em Sagres, não possa calçar os chinelos e deslocar-se à junta de freguesia desta localidade do Algarve para electronicamente votar, mas seja forçada a cruzar todo o país (provavelmente não de chinelos), para cumprir o mesmo dever/direito.
Porque levanto esta questão neste ponto do artigo?
Porque ela representa uma condição essencial para que todo o meu raciocínio se concretize.
Muito para além da simples votação nos representantes governativos, este sistema de consulta popular deve, num sistema que se pretende verdadeiramente participado, funcionar como um "mega conselho" em que cada um verta a sua opinião (pelo voto) sobre assuntos e decisões de interesse público, quer estes sejam locais, regionais ou nacionais.
Nesta versão de democracia, o actual exercício indirecto de soberania do povo será substituído pelo exercício directo da soberania, uma vez que as decisões serão por si tomadas, e não delegadas em caras e colorações avulsas ao sabor da sinusóide de poder que se inverte a cada dois mandatos.
Os representantes do povo devem ser, neste novo paradigma, apenas a face visível da operacionalização dos desejos da sua população.
Dir-me-ão que os programas de Governo são isso mesmo. Pois bem, e se eu concordar com a medida A mas não com a B. Tentarei nova proposta, que desta vez me apresenta uma medida C muito boa, mas que me deprime com uma medida D que considere desadequada. E assim corremos todas as propostas, sem nenhuma nos satisfazer verdadeiramente.
Imaginemos pois este sistema alternativo de tomada de decisão:
- É criada uma rede interna, à escala nacional, com terminais em todas as juntas de freguesia, onde cada eleitor poderá aceder, arbitrariamente, identificando-se com o seu número de contribuinte e uma palavra passe, tal como na declaração de finanças. O sistema efectuará imediatamente uma filtragem e identificará se este número de contribuinte corresponde a um cidadão elegível para votar. Neste sistema existirá uma bolsa de propostas (nacionais, distritais e locais) a que o sistema, em função do seu domicílio fiscal, lhe permitirá aceder. Assim, um cidadão residente em Almodôvar, maior e vacinado, poderá pronunciar-se sobre decisões nacionais, do distrito de Beja e ainda decisões do seu concelho, estando-lhe vedadas quaisquer outras decisões distritais ou concelhias.
Poderíamos assim sentir que o futuro realmente nos pertencia, que ninguém decidiria por nós a construção de auto-estradas paralelas, que distam nalguns troços menos de cinco quilómetros entre si, quando todo o restante país se vai cada vez mais isolando; se seria a decisão da maioria o definhamento da rede ferroviária nacional e, em contrapartida, o endividamento de várias gerações num comboio um pouco mais rápido que os demais e que ligue duas cidades apenas, ou se a maioria aceitaria que o litoral fosse literalmente "assaltado" pela pressão imobiliária desvairada, para citar alguns exemplos desgarrados.
É certo que muitas vozes se levantarão contra tal ideia.
Que é insustentável referendar todas as decisões. Que as pessoas não são tecnicamente competentes para decidir (mas são tecnicamente competentes para avaliar e comparar programas de governo...). Que retira autonomia aos governantes.
Todos estes argumentos aparecerão se a condição primária - o desinteresse, estiver ausente, pois colidirá com um projecto pessoal de usufruto individual à custa do domínio público.
E é muito importante perceber a importância da consciência e inteligência colectiva no processo de decisão. Múltiplos exemplos dizem-nos que, face a um problema específico, a globalidade das respostas de um conjunto heterogéneo de indivíduos (ainda que não especialistas na matéria), tendem a ser as mais acertadas. E ainda que possa ser cientificamente refutável esta última afirmação, será muito mais justa e inatacável, pois cada um terá tido a oportunidade de dar, à sua escala, um contributo para o destino a dar à sua Nação.
O único senão seria a extinção da tão portuguesa personagem "Velho do Restelo", pois ninguém se poderia queixar de decisões por si (maioria) tomadas.

Um abraço,

Afonso Gaiolas

P.S. - A maior felicidade do conselho familiar consiste na constatação da sua perpetuação. Parabéns Ana, parabéns António.
P.S. 2 - Dois tracinhos para o Pai Afonso... Estou a tentar apanhar o Avô e o Pedro (... e vão mais dois, diz o Alexandre enquanto aponta!!)