sábado, outubro 27, 2012

Dois mil e umas centenas

E se o futuro nos trouxer a maior revolução, mas também o maior dilema de todos os tempos?
Até onde aceitaria abdicar da sua privacidade, se isso significasse um avanço intelectual proporcional sem paralelo na História da Humanidade?
Gosto de pensar nos avanços tecnológicos sem os perigos e precalços que derivam da imperfeição humana.
Triste sina a História continuar a mostrar-me o quanto continuo afastado da realidade, e que o senhor Hyde que cada um tenta reprimir dentro de si se continua a sobrepor, demasiadas vezes para o grau civilizacional em que julgamos estar, ao doutor Jekyll que aparentamos ser.
Assisto com um misto de admiração e assombro à proliferação de novos acessórios tecnológicos, que cada vez mais nos conectam à rede global, quer de conhecimento, quer de socialização virtual.
Sendo certo que muitas empresas de hardware e software, baseadas ou não no vale do silício, ainda faturarão muitos milhares de milhões de euro-dólares enquanto durar a ânsia de estatuto baseada na ostentação, o futuro estará, no entanto, muito distante deste agregado de peças externas de metal e cristais líquidos.
A grande revolução tecnológica (por muito que custe aos adeptos de ipad e iphone e ipod em cima da mesa do jantar, qual crista engalanada para fêmeas impressionáveis) consistirá na transição dos mecanismos externos para a aventura interna de interação biomecânica / biónica.
A minha visão do futuro da espécie humana, que permitirá um incremento de vida útil de aproximadamente vinte anos, ainda que mantendo a esperança média de vida de cada um, reflete uma realidade onde a escola (como a conhecemos) deixará de fazer sentido, não existindo qualquer hiato temporal entre aquisição de conhecimentos e colocação dos mesmos em prática, em jeito de retorno altruista à sociedade.
À nascença, a cada nova vida será implantado um sistema biónico que complementará a limitada capacidade cerebral humana com a incomensuravelmente superior capacidade de armazenamento e processamento de informação dos mais recentes nanocomputadores quânticos (ou quaisquer outros que se lhe sucedam).
Estes sistemas, para além da referida capacidade de exponenciação intelectual e de imediatização do conhecimento adquirido, terão a capacidade de interligação em rede, com todos os restantes seres detentores desta capacidade.
Tornam-se assim possíveis de concretizar os conceitos de telepatia e, numa perspetiva radicalmente mais avançada, torna-se possível materializar a expressão "ver o mundo com outros olhos".
Tal como hoje podemos partilhar os vídeos que filmamos, no futuro poderemos partilhar, ao vivo e a cores, aquilo que os nossos olhos, ouvidos, pele, nariz e todos os restantes orgãos estiverem a receber que mereça ser partilhado, a cada momento, com quem entendermos, se assim o entendermos, sem restrições quilométricas ou de qualquer outra espécie.
Maravilhoso mundo novo?
Sem dúvida!
Com muitas ameaças à felicidade humana?
Mais que talvez...
Qualquer sistema biónico, porque desenhado e programado por humanos, terá falhas mais ou menos percetíveis, que poderão ou não ser exploradas, bastando a existência de más intenções que as justifiquem.
Não mais um ser humano implantado poderá ter a certeza da sua privacidade.
Não mais poderá estar certo de ser dono absoluto da sua consciência.
A manipulação intelectual torna-se um ato físico, ao invés de psicológico, podendo forçar toda uma comunidade de indivíduos a adotar determinados comportamentos ou seguir determinada ideologia que seja subrepticiamente introduzida em linhas de código dissimuladas.
Em última instância, o controlo absoluto das faculdades físicas de um corpo poderá ser corrompido, com a subtração de toda a informação sensorial de um organismo vivo (consciente ou não para esse ser), ou mesmo a sua utilização física de forma diversa do seu comportamento expectável, face à sua personalidade.
Devemos portanto parar a evolução?
Ainda que o quiséssemos, não o conseguiríamos...
Não conseguiu a igreja na idade das trevas e não o conseguirá nenhuma outra entidade, ainda que tão ou mais poderosa, no futuro.
É um caminho de sentido único... e ainda bem que assim é, pois suspeito que o relógio universal contra o qual corremos não se compadece com obscurantismos temporários.
Devemos é evoluir moralmente mais rapidamente do que o fazemos no processamento de qubits. Só assim conseguiremos evitar a repetição da infeliz história da coexistência da maravilhosa descoberta da energia nuclear e da menos maravilhosa vaporização de Hiroxima e Nagasaki.
O futuro reserva-nos desafios inimagináveis à luz do conhecimento de gerações de seres que ainda há dias batiam num ecrã táctil como se estivessem no processo de fecho da porta do quintal.
Porém, o receio do desconhecido nunca foi motivo suficiente que travasse um punhado de aventureiros que, por mar, por terra e pelo ar, ao longo dos séculos, mostraram às hordas de seres bípedes remanescentes que aos humanos está destinado um papel maior na orquestração cósmica (ainda que o cosmos não o saiba, ou por ora se recuse a admitir).
A única grande ameaça a todo este processo evolutivo reside, e como tudo isto soa a um muito desgastado clichê, no fosso cada vez mais cavado entre ricos e pobres.
Num ambiente tendencialmente capitalista, criar-se-á um grupo de indivíduos intelectualmente avançados e com capacidades sobre-humanas de relacionamento e partilha de informações (os que financeiramente coseguirem custear os "apêndices" e seus melhoramentos), enquanto que no outro lado da barricada teremos os pobres condenados à regressão no processo evolutivo, ainda que alguns deles nascidos com potencial acima da média dos restantes.
Rezo a um Deus no qual não acredito para que esse dia de ditadura monetária não chegue a despontar e possamos dar, no futuro, iguais oportunidades a quem igual nasce, seja numa manjedoura de Belém ou em berço debruado a ouro num dos aposentos de Windsor!
 
 
A única forma de prever o futuro é ter poder para formar o futuro.
Eric Hoffer
 
 
Afonso Gaiolas


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