segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Saudade escreve-se com cinco

Quanto é pouco tempo?
Quanto é muito tempo?
Quanto é demasiado tempo?
Não desejo quantificar o inquantificável, nem tão-pouco tecer considerações pseudo-científicas acerca do referencial das escalas macro ou microscópicas, quando falamos do Espaço em movimento.
Interessa-me hoje, apenas e só, tentar perceber as suas implicações no dimensionamento da terrível (que no léxico de uma criança de três anos pode significar o mais elevado grau de malvadez) palavra tão tipicamente portuguesa, que de tão forte, em si resume a essência da nossa maior tradição musical.
Falar de saudade é como falar de memória. Uma e outra palavra imiscuem-se de tal forma que, a menos que todo o nosso passado nos envergonhe ou atormente, sempre que abrimos estas gavetas repletas de informação religiosamente guardada, sinapse após sinapse, neurónio atrás de neurónio, é o perfume amargo da saudade que libertamos, por algo que nunca mais se repetirá nas nossas vidas.
Não mais esquecerei a resposta de um octogenário comum, quando questionado por um adolescente aparvalhado, sobre aquilo que mais lhe custava em ser velho. Com um olhar lacrimejante que não consigo reproduzir num limitado alfabeto de 23 letras, respondeu que era... lembrar-se de quando era novo!
Ponto final nesta primeira parte da questão.
Fácil é constatar que retratei até agora, fruto da irrepetibilidade da sequência temporal da nossa existência, a lembrança de algo que se extinguiu, quer sejam os dez segundos anteriores à leitura deste parágrafo, ou os dez segundos posteriores ao nascimento de um filho.
Da segunda parte, daquela saudade que nos faz sofrer em antecipação, por sabermos de antemão que irá ocorrer, e que nos dilacera durante, por deixarmos as gavetas escancaradas, por no fundo gostarmos do inebriação que o perfume provoca, por nos fazer sentir mais perto daqueles que tivemos temporariamente que deixar, dessa segunda parte da questão é tão mais tormentoso falar.
Quarenta dias é um intervalo temporal bíblico. É também provavelmente o número de vezes que a tal palavra ecoará em cada recanto meu, antes ainda que o hemisfério norte do nosso planeta assista ao solstício de Verão.
Demasiado tempo... sei-o, por já possuir um referencial.
E, mais do que tentar explicá-lo agora, remeto para vós a percepção ajustada daquela que foi a minha própria percepção, distorcida pelo facto de os acontecimentos se estarem a desenrolar no momento em que escrevia.
O que em seguida lerão foi retirado da gaveta da saudade que sabemos de antemão ter um fim.
CINCO DIAS
Quando as horas parece que queimam, quando o mundo me oprime com a força de mil atmosferas, quando me forçam a estar longe de vós... tudo o que vejo, cheiro, e toco lembra o toque, o odor e a visão das três caras mais preciosas e bonitas que o meu coração alguma vez possuirá. Então, nessas horas infernais, a simples despedida, num cais frio, húmido, isolado da ignorantemente invejada civilização, de um pai que parte porventura para mais uma semana de trabalho num qualquer lugarejo, mais frio e húmido que o cais que neste momento pisa, a mãe que segura um filho que não compreende a injustiça de um mundo que separa a árvore dos seus frutos, as lágrimas que verte por dias de solidão que mil soldos não pagam... as mãos frágeis de criança que estendidas suplicam que fique; dois passos atrás para um último beijo interrompido pela incómoda buzina que chama, uma lágrima que não chega a correr pela face, que os homens serão fortes mesmo quando não o são... E o barco que parte... e a criança e a mãe num aceno frenético, o pai que responde, com a complacência de um gesto inúmeras vezes repetido, e a consciência pesada pelos mil soldos que não apagam a dor deste cenário, e a premonição da continuidade, que o frio e a humidade farão sempre parte daquele cais!
E eu no barco, olhar fixo no homem desolado, desolado como ele, desolado mais que ele... Choro como ele, choro por dentro, dividimos uma dor que mais ninguém sente nem vê...
Desfoco... volto a focar o olhar... e vejo-te linda no cais... vejo duas crianças que correm e acenam, vejo o meu reflexo em vós... e o cais que parece fugir...
Ordeno que virem o barco, mas ninguém parece ouvir-me... Vocifero contra todos quantos passivamente deixam que o frio húmido se entranhe nos seus corações, lanço-me na façanha de virar o barco com as minhas próprias mãos... olho para o lado e o homem que me ajuda, o olhar de esperança que me fulmina... o cais que fica mais perto, à distância do salto que o homem dá sem hesitar... as madeiras que rangem queixando-se do peso suportado pela corrida desenfreada... e a humidade que se afasta... e o frio que desaparece... quando a árvore deixa de abanar e recolhe no seu interior os tesouros que nunca lhe deviam ter sido retirados.
Tu, ao invés... serenamente pegas nas crianças, deslumbrante como estavas no dia em que me enamorei de ti, e calmamente te sentas ao meu lado... e as crianças que dormem a sorrir nos nossos colos, e a tua cabeça no meu ombro...
-"Faltam cinco dias", sussurro-te...
... e as horas param de queimar.
Afonso

1 comentário:

Lua disse...

Tamanha saudade é um privilégio único, pois esconde o tesouro incomensurável que para muitos está vedado. As tuas palavras emocionam-me verdadeiramente, não tanto por imaginar as carinhas que tristes aguardam, mas por arquitectar o esplendor da chegada. Os risos coloridos, a alegria cantada em gritos de crianças, a emoção declamada nos olhos da amada. Que privilégio Afonso!