Precisamos urgentemente de um Inimigo Comum.
Digo-o com a mesma mágoa que tenho carregado dentro de mim, desde que reconheci, há alguns anos atrás, a inevitabilidade da consumação de tal afirmação.
E, acreditem, não creio que exista humilhação maior que o reconhecimento, a um conjunto de seres que se julgam racionais, inteligentes e superiores à média dos organismos que baseiam a sua existência nos átomos de carbono, da necessidade de uma muleta conflitual externa que ajude a sanar uma multitude de pequenos (grandes) conflitos internos.
Falso? Incoerente? Ilógico?
Quem, dos que pronunciaram estas três palavras, se voluntaria para envergar uma armadura e lutar ao lado de Afonso Henriques, na época em que o título honorífico "Dom" ainda não tinha sido inteiramente merecido, e me tente negar a responsabilidade do inimigo comum Mouro na agregação de ideais e vontades num conjunto necessariamente heterógeneo de pessoas, ainda sem identidade grupal como Nação. Ou na aliança de inimigos históricos no combate a invasores comuns sedentos de território. Ou uma miríade de outros exemplos por esse mundo fora, do mais simples ajuntamento e desentendimento tribal à mais complexa teia de Nações.
Há longos anos que intimamente sinto que a Humanidade precisa de um constrangimento comum, uma necessidade mundial, que compromenta a segurança de todos,- remediável -, se resolvida à escala global, mas suficientemente credível e imediata para que todos sintam a necessidade de um empenho total e incondicional para que o problema se solucione.
Só assim, na minha opinião, conseguiríamos que o foco de luz que actualmente apenas ilumina a zona do umbigo a alguns milhões de energúmenos, passasse a clarear a zona da caixa craniana e fizesse perceber que todos precisamos de respirar o mesmo ar e que todos inevitavelmente fechamos os olhos quando escurece.
Quando se aflora este assunto, imediatamente se eriçam os pelos dos tementes a entidades alienígenas agressoras (curiosa a necessidade de colocar algo com uma capacidade superior à nossa, se for esse o caso, como hostil). Mas não são do domínio da ficcção as potenciais rotas de colisão entre dois corpos celestes e, definitivamente do domínio da realidade imediata a degradação galopante do nosso cantinho azul.
E, analisando este caso específico, que demonstra um tremendo desrespeito pelas gerações actuais, mas especialmente pelas vindouras, podemos fazer uma extrapolação para justificar todos os ódios e conflitos remanescentes, latentes ou recrudescentes que a Humanidade carrega como eterno fardo.
Reconheço como válida a contestação à palavra eterno... mas de quantas gerações estamos a falar, quando tentamos encontrar o ponto em que todos os conflitos estejam sanados. Provavelmente necessitaremos de uma escalar milenar... e não me parece que disponhamos de tanto tempo assim para desperdiçar.
E tudo porque nos recusámos sempre a reconhecer a igualdade neste mundo. Porque uns se julgarão sempre maiores e melhores que outros, religiosa, cultural ou economicamente.
Porque será sempre preciso esperar pelo instante que antecede a morte, aquele suspiro que concentra toda a fragilidade da vida, para que eventualmente todos se reduzam à centelha a um sopro de se desvanecer. E mesmo aí, graças à maravilhosa ajuda da malfadada religião, por vezes ainda se consegue deturpar o óbvio e criar a ilusão de que, até depois de extintos, seremos melhores que os demais. Que ninguém tenha ilusões, nunca houve sequer a menor intenção (apesar do apregoado), de promover a igualdade entre os povos através da religião, e basta ver o carácter discriminatório do acesso à "eternidade" post-mortem, para concluir em que se baseiam os pretensos princípios morais.
Nada disto faz sentido, tudo parece bacoco, como bacoca nos parece hoje a adoração politeísta da Grécia Antiga. E, no entanto, que avançados eles eram no seu tempo...
Mas, se todos acordamos em reconhecer esta irracionalidade, porque tardam, por exemplo, as questões ambientais em tornar-se realmente um desígnio global.
A resposta está no foco de luz no umbigo.
Porque ainda há quem pense que a sua parcela de terra pode ficar imune à degradação, e que serão apenas os outros a arcar com as consequências dos erros de todos. Apenas no dia em que acordarmos com a catástrofe iminente a bater-nos à porta (e não será concerteza levemente), todos se unirão numa corrida desenfreada contra o relógio, em busca de uma solução global. Aí, mesmo que só por um instante, esquecer-se-ão as cores da epiderme, do cabelo, dos olhos, das escrituras sagradas, e todos farão apenas parte de um imenso grupo de seres, que partilham o mesmo ADN, cujas necessidades básicas são comuns, e que têm que actuar coordenadamente para assegurar a sobrevivência e simultaneamente o bem estar global como espécie.
É sem dúvida sombrio que tenha de defender a existência de uma ameaça comum que ajude a resolver os nossos problemas imediatos. E, acreditem, não passa um dia que não tente participar na resolução do problema que leve à aplicação de uma solução alternativa, que mostre a existência de um propósito maior que torne insignificantes as desavenças mesquinhas. Porque, estou convencido que é este vazio ideológico que gera o desnorte. Que deturpa as prioridades e acentua o valor do vil metal.
E, mais uma vez, a religião não fornece qualquer refúgio, pois não identifica qualquer objectivo para cada um de nós. Ao seu jeito humano, resolve apenas os problemazinhos de protecção, bem-estar e paternalismo, não fornecendo qualquer pista em relação à questão fulcral... a existencial!
O porquê da existência?
Reside aqui a segunda via para a resolução do nosso problema, aquela que sem dúvida corresponde ao graal da Humanidade, mas que, por agora, se encontra inatingível... a descoberta do Desígnio comum.
Porquê? Para quê?
Enquanto não conseguirmos derrubar o acento circunflexo, transformando a questão em parte de uma afirmação, precisaremos de um paliativo que resolva o nosso problema enquanto espécie, no imediato.
Porque, à medida que a tecnologia avança e se torna acessível a um cada vez maior número de indivíduos, mais perto estamos de fornecer instrumentos de destruição à escala planetária. E, mesmo que o pior dos cenários não se concretize, ver-nos-emos confrontados com o fantasma da teoria do espaço vital, quando tivermos que começar a lidar com uma população de dois dígitos a preceder os milhares de milhões de indivíduos.
E quanto fundo pode ser o nosso umbigo, quando nos recusamos a olhar para estes números globais, e nos mantemos preocupados com a penúria das taxas de natalidade locais.
É tempo de olhar, pensar e gerir o todo, com ou sem desígnio Maior... porque os problemas deixaram há muito de ser locais... e o bater das asas de um anjo assexuado, vai mesmo causar um ciclone na planície das virgens que esperam ansiosamente a chegada do seu chamuscado mártir.
Um abraço,
Afonso Gaiolas
1 comentário:
Após uma leitura mais ou menos atenta do texto, não resisto à tentação de, em primeiro lugar, exprimir a minha concordância com a reflexão feita sobre o tema daquilo a que eu costumo chamar a questão dos "quintais" (países/
nações/culturas/especificidades ou seja lá o que for)que historica e fatalmente vem impedindo a humanidade de cumprir o grande desígnio de crescer. Parece que o caminho(ou caminhos, conforme pensam alguns) trilhado até aos nossos dias não só não nos tem conduzido à desejada igualdade (pelo menos de oportunidades) mas antes tem, continuadamente, desenhado percursos tão assimétricos que fazem com que só se nasça em quantidade nas zonas do planeta onde não há alimentos na devida proporção. Creio mesmo que se de uma embarcação se tratasse, há muito teria adornado e tal só ainda não sucedeu porque os muitos passam fome e são levezinhos. Assim, a coisa lá vai. Os senhores donos do mundo, ou do seu mundinho (paisinho) ainda não perceberam que estamos todos dentro do mesmo barco e que o fim trágico pode ser apenas uma questão de tempo. Contudo, a minha maior dificuldade é perceber como podem conviver pontos de vista tão diferentes. Pronto...a verdade é que não convivem. Apenas coexistem. Há dias visitei, no Centro Cultural de Belém, a exposição de peças de arte, pertença de Joe Berardo. Não sendo eu entendida em arte, embora não totalmente analfabeta na matéria, apreciei sobretudo um quadro da Paula Rêgo (O celeiro) e um outro de um autor de apelido Dominguez(O par), talvez latino-americano. Até aqui tudo bem. O que não consegui entender foram os múltiplos exemplos de conceptualização do nada que proliferavam or todo o lado. Telas em branco, telas em preto, telas em azul...arre! Há meses atrás numa exposição de uma cidade americana, uma visitante foi presa e multada em dólares por ter beijado uma tela em branco, deixando nela a marca indelével do seu batôn. É que a dita estava avaliada em 2 milhões de dólares.
Que fazer? Continuar a remar...
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