domingo, fevereiro 05, 2012

Condenados à morte

Porque é que se indignou com este título?
Por acaso julgará não o ser?
Atuamos, todos os dias da nossa vida, como se tivéssemos sido bafejados pela imortalidade. Como se, adiando a nossa existência, não corrêssemos o risco de não chegarmos a concretizar todos os projetos e ideais que fomos concebendo ao longo dos anos.
Este tema é tão atual, como o foi no passado para Sartre, Camus... entre tantos outros que o expressaram, metaforica ou diretamente para todos os que os quiseram ouvir. Mas que fazer quando, ainda que reconhecendo os axiomas expostos, estes sejam negados pela constatação das nossas ações diárias. Um pouco como a relação portuguesa da sua população com a estrada. 
Todos se indignam, praguejam, choram e lamentam as atrocidades que continuamente destroem milhares de famílias nacionais, ceifando, sem distinção de credo, raça, sexo, idade ou estatuto económico-social vidas, e vidas, e vidas... quando simultaneamente, todos atuam como se não fizessem parte da mesma comunidade, como se não fossem portuguesas as nossas rugas, as nossas expressões e cada batimento do nosso coração. Conduzimos na estrada, como o faríamos em Sebring, Spa Francorchamps ou Le Mans. E não, não me refiro à via pública de tão ilustres cidades! 
Sempre com a ilusão de que nada do que ouvimos e lamentamos nos tocará diretamente.
Tornou-se muito atual e "fashion", como dirá qualquer internauta ao inserir mais um detalhe da sua vida pessoal no twitter, que as pessoas publiquem mensagens de exaltação à citação em latim  do mais famoso detalhe da obra Carminum Liber Primus, do poeta romano Horácio.  
Carpe Diem, gritam todos... enquanto replicam., reencaminham, gostam, partilham e aconselham, sem verdadeiramente apreender o significado da frase, sem se desviarem um quarto de milímetro do seu projeto de vida adiado, apostados no "se me sair para a semana o euromilhões é que vai ser"!
 E passou-se uma vida inteira... e o euromilhões que nunca chegou a sair... e o verdadeiro jackpot mesmo à sua frente sem nunca o terem verdadeiramente vislumbrado... até ao dia em que se deram conta serem um dos atuais sete mil milhões de condenados à morte... um sopro antes do presente se transformar em pretérito perfeito.
Por duas vezes aflorei já este assunto, por várias vezes me reli. Sinto que ainda preciso de escrever sobre ele. Porquê?
Por sentir que as rugas também são minhas, que dou voz às mesmas expressões e que é Portugal que me corre nas veias.
Não me dissocio da sociedade... não sou melhor do que ela. Na verdade, tudo lhe devo. E só por isso... não por qualquer laivo presunçoso de superioridade, assim me escrevo!
Perceber Horácio é entender que o hedonismo não nos fará melhores... apenas uma espécie de seres bípedes que proliferam... mas não prosperam, no sentido intelectual do termo.
No excerto de que Carpe Diem é retirado, são os conselhos a Leuconoe "...sapias, vina liques... / ... que sejas sábia,  coes os vinhos..." que melhor traduzem a filosofia subjacente ao  seu pensamento. O aproveitamento de cada momento de cada dia para a elevação moral e intelectual de cada um, colocando este ideal ao mesmo nível da execução das tarefas físicas resultantes do nosso envolvimento na sociedade, é esta a visão de quem um dia quis escrever "trata pois de colher o dia, o dia de hoje, que nunca o de amanhã merece confiança".
Temos pois duas perceções totalmente díspares, igualmente distorcidas, que toldam a racionalidade de quem deve olhar a vida do ponto de vista do condenado à morte.
Por um lado, guardemos a sensação de imortalidade apenas para elevar o nosso massajado ego de super-seres que tudo podem. Por outro, assumindo a limitação do tempo disponível para que façamos alguma diferença neste mundo, não o desperdicemos no hedonismo mais bruto e primário, mas na construção de algo que perdurará para além da nossa fragilidade carnal.
Assim, ainda que condenados à morte, serão as memórias que aqueles que nos rodeiam terão de nós a libertar os grilhões que nos prendem enquanto inelutavelmente percorremos a nossa milha verde.

"Nunca se é Homem enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se estaria disposto a morrer." 
Jean Paul Sartre

Para a melhor família do mundo.

O vosso pai, marido, filho e irmão,

Afonso

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