quarta-feira, dezembro 05, 2012

O feitiço da Lua

Lentos são os dias.
Tão lentos que parece que voam.
A lentidão passou a ser parte integrante do seu ADN. Contudo, nunca o tempo pareceu escorrer tão veloz por entre dedos incapazes há muito de o suster, de o aprisionar e preservar como se do bem mais precioso do mundo se tratasse...
É este o paradoxo de ser velho!
Ser velho é ser lento, é encarnar Paul Rayment, soberbamente imaginado por Coetzee, mas com a agravante de o adjetivo se manter válido, mesmo sem qualquer diminuição física do protagonista.
Ser lento não é sinónimo de ser burro.
Ser lento não pode ser sinónimo de ser descartável.
Trapos somos todos. Uns engomados depois de lavados, outros descolorados pela passagem do tempo, outros ainda parcialmente rasgados pelas agruras às quais a sorte nos sujeitou.
Todos oriundos da mesma gaveta... todos com o destino final traçado na própria data de fabrico.
Se a ilusão da imortalidade da irreverente juventude pode atenuar o facto de ignorarmos (e desdenharmos??) de todos quantos não tenham, aparentemente, bebido o tão famoso quanto improvável elixir e pareça diminuído aos nossos olhos, a maturidade que a carruagem intermédia do tempo nos devia trazer, deveria ser suficiente para que as abjeções a que infelizmente assistimos cada vez com mais frequência fossem de vez eliminadas da nossa sociedade.
Gostamos de a apelidar de sociedade de valores...
Gostamos de apregoar a cada vez maior preocupação com as nossas crianças, com a sua educação e o seu futuro.
Gostamos de apregoar que somos um povo que preserva a sua memória coletiva, os memoráveis feitos e a fibra dos seus antepassados.
A verdade...
A verdade que dói e corrói é que não gostamos dos nossos velhos.
Não gostamos do transtorno que causam às nossas vidas cada vez mais individuais, individualistas e solitárias.
Não gostamos do empecilho  e entrave ao controlo pleno das nossas possessões e decisões, das nossas casas e recantos e das nossas conversas e silêncios.
Não gostamos de incontinência, de cheiros, de maleitas, de tropeções e apoio em corrimões.
Não gostaremos por certo de o ouvir, mas não passamos de uma cambada de parvos armados em intelectuais!
Aquele tipo de parvos que, quando se lhes aponta a lua... olham para o dedo.
Aquele tipo de parvos que se vê livre de quem tudo deu por si enquanto se tornava um adulto independente e os deposita agora, como retorno, num lar muito asseadinho... longe da sua vista, para eventualmente depois, que a crise toca a todos, os resgatar mais tarde para sua casa... não por amor aos progenitores mas ao rendimento mensal extra que isso lhe pode trazer.
Falamos muito de negligência parental, da punição judicial e social de pais que maltratem, menosprezem ou abandonem os seus filhos.
Recusamo-nos a falar de negligência para com os nossos ascendentes.
Recusamo-nos a assumir que é da mais elementar justiça moral que, quem deu o melhor de si durante os melhores anos da sua vida, renunciando à luxúria da conceptualização narcisista do EU em detrimento de todos os outros em seu redor, merecerá mais consideração que o tratamento assético dado por estranhos, numa casa estranha, tantas vezes numa terra estranha ou, como se a perda de mobilidade e energia o fizessem regressar a um estágio de pré-desenvolvimento, o tratamento infantilizado dado por aqueles que, afinal, de criancinhas mimadas disfarçadas de engravatados ridículos não passam.
Quantos acreditam que a colocação num colégio interno trará mais amor e melhor educação para a cidadania aos seus filhos?
Pois... a maioria considera que o amor dos pais é insubstituível, e que nenhuma outra hipótese que não o crescimento saudável em ambiente familiar deve ser considerado, independentemente do esforço e sacrifício familiar que tenha que ser feito para orquestrar toda a vida em redor da(s) novas vidas que despontam.
Estas mesmas pessoas consideram, no entanto, que a melhor solução para o problema de velhice de seus pais é o seu internamento num lar de terceira idade, oferecendo como retribuição de todo o amor em si depositado ao longo de toda a sua vida, uma visita quinzenal ou mensal que diminua o peso de uma consciência que o teria... se chegasse a existir!
Sou contra os lares?
Não, não sou.
Tal como não sou contra a existência de orfanatos.
Sou contra o abandono de velhos em hospitais enquanto duram as férias em Grandvalira, contra o esquecimento a que são votados em lares ou outras habitações de ocasião, contra o tratamento infantilizado de quem sabe mais na ponta de cada cabelo branco que três mestrados integrados de Bolonha, contra o desdém com que se ouvem as suas opiniões e conselhos, apenas porque a voz deixou de ser delirantemente cristalina.
Sou absolutamente a favor de uma censura social tão naturalmente forte que por si só seja suficiente para auto-regular uma sociedade que está a deixar de perceber o valor das coisas que não se podem trocar em sites de compra e venda de artigos supérfluos.

Por favor... pare de uma vez por todas de fixar o dedo e contemple quão bela se lhe afigura a Lua.

Afonso Gaiolas
 

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