A Pátria Honrai, que a
Pátria vos contempla!
Peço emprestado o lema à Marinha
Portuguesa, porque é nele que revejo toda a argumentação subjacente ao assunto
que a todos move desde a morte de Eusébio da Silva Ferreira.
E devia ser ele o único, porque
quaisquer outros, ainda que muito bem fundamentados e adornados, não mais
contribuirão que para envergonhar a memória dos ilustres ancestrais que
forjaram a Nacionalidade e a mantiveram coesa ao longo de Novecentos Anos de História.
Entristece-me ver colocado ao mesmo
nível o Fundador, figura paternalista da Nação Portuguesa e responsável pelo
vislumbre da primeira tarde lusitana a um qualquer jogador de futebol, ou o
Santo Condestável, o maior Guerreiro Português de sempre, símbolo da coragem e
independência lusitana, a uma virtuosa artista vocal. Entristece-me que nos
arrepiemos e se nos ericem os pelos da nuca quando se canta o hino… apenas se
for antes de um jogo da bola.
É doentia a histeria coletiva em
volta destes artistas contemporâneos que, à falta de feitos mais valorosos que
voltem a dar o lustre e dignidade que Portugal merece, se tenta que
artificialmente da lei da morte se vão libertando, num reconhecimento tácito da
mediocridade de valores instalada na sociedade e nas elites que hoje conduzem o
país.
Vejamos a sucessão de erros que
conduzem a este inqualificável estado atual.
Ideal de Passos Manuel, validado
pela Rainha D. Maria II, o Mosteiro dos Jerónimos foi, por decreto de 26 de
Setembro de 1836, tornado Panteão Nacional.
O Panteão Nacional foi a fórmula
encontrada para agregar e honrar num só local as figuras maiores da Nação
Portuguesa, até então dispersos pelos mais variados locais do nosso país.
Posteriormente, este ideal foi
alterado pela Lei n.º 520, de 29 de Abril de 1916, que consagrou a Igreja de
Santa Engrácia como local definitivo para o Panteão, substituindo o local
representativo do melhor da arquitetura Manuelina e do período áureo dos
Descobrimentos.
Já em agosto de 2003, em regime de
exceção, foi também reconhecido o estatuto de Panteão Nacional ao Mosteiro de
Santa Cruz, em Coimbra, local onde estão sepultados D. Afonso Henriques e seu
filho, segundo Rei de Portugal, D. Sancho I.
Até
aqui, tudo pacífico. Decisões consensuais e intelectualmente irrepreensíveis,
conquanto adequadamente e sobretudo atempadamente se finalizassem as obras, que
de tão demoradas ganharam estatuto de expressão popular.
Analisemos
agora os detalhes…
No
século XIX, os Portugueses de então decidiram, sabiamente, que apenas o teste à
erosão do tempo permitiria uma opinião isenta e sem qualquer carga emocional ou
romântica acerca do mérito absoluto (mas também relativo) de cada Português a
ser elevado ao Estatuto de Herói Nacional. Decidiram que quatro seriam os anos
necessários após a morte, para que os Portugueses validassem a entrada em tão
ilustre última morada.
Os
Portugueses do Século XXI, muito mais sábios e intelectualmente superiores…
decidiram que, ao invés de quatro, bastava um ano após a morte para que a
trasladação do corpo pudesse ser efetuada e, desvirtuando todo o espírito do
legislador inicial, no caso de Eusébio, tomaram a decisão quanto ao mérito,
ainda a missa de sétimo dia não tinha sido celebrada.
Quais
os riscos destas decisões?
Que
seja a comoção e não a racionalidade a tomar a decisão… ou que a pressão
popular o faça, que as eleições estarão sempre à distância de uma dança de
cadeiras.
Todos
sabemos que as pessoas tendem a tornar-se muito melhores quando perecem, que
todas as suas qualidades são exponenciadas e os seus defeitos menorizados ou
suprimidos. É inevitável, a beleza da condição humana também se constrói neste
perdão póstumo que a todos nos expurga dos pecados terrenos. Mas a consciência
desta nossa fraqueza deve impedir-nos de tomar decisões apressadas, toldadas de
irracionalidade emocional, das quais nos venhamos a arrepender no futuro.
E para
que possamos justamente minimizar estas injustiças relativas, convém então
conhecer as regras, o padrão requerido para que o estatuto de herói seja enfim merecido.
A
lei nº28/2000 de 29 de novembro auxilia-nos na resposta. Diz o número um do
artigo segundo da referida lei, que as honras do Panteão se destinam a
homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram
por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos
serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária,
científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da
dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.
Concordo
em absoluto.
Mas
as pessoas valem como um todo. E holisticamente devem ser considerados os seus
atos ou comportamento, para que se possam tornar uma referência para todos os
Portugueses que lhe sucederem.
Ser
um grande jogador de futebol é suficiente?
Ser
uma grande cantora é suficiente?
Para
ambos a resposta só será afirmativa se, aliado ao virtuosismo do seu talento,
estiver um ideal de serviço patriótico e uma conduta moral e social consentânea
com o ideal anteriormente descrito, acima de quaisquer interesses pessoais ou
corporativos.
Não
penso que, nem num nem noutro caso, Amália e Eusébio, se reúnam estas
condições. Perdoem-me os familiares, os amigos ou os seus simpatizantes, mas
Portugal tem necessariamente que ser maior que o indivíduo, sem tendencialismos.
E o
mesmo se aplica, por coerência de raciocínio, a Aquilino Ribeiro. Num tempo
presente em que os fins nunca poderão justificar nem desculpar os meios, não
pode ser admissível ser atribuído o estatuto de Herói de Portugal a um
português que praticou atos terroristas, atentando contra a vida de outros
portugueses (atentado de 28 de novembro de 1907, preso em flagrante delito… portanto,
mesmo que se não queira aliá-lo diretamente ao regicídio, tamanha atrocidade me basta…),
quaisquer que eles fossem, por motivos ideológicos e de oposição ao regime
vigente. Ainda que fantástico escritor romântico, inegavelmente um dos melhores
da sua geração…
Por
outro lado, não parece lógica nem racionalmente explicável a trasladação do
corpo de Almeida Garrett, em dezembro de 1966, do Mosteiro dos Jerónimos
(Panteão Nacional à data do galardão honorífico) para o novo Panteão, na Igreja
de Santa Engrácia. Percebe-se a permanência de toda a Realeza no Mosteiro dos
Jerónimos (para que, se fosse esse o critério, o olhássemos tacitamente como
Panteão Real), mas nele permaneceram Alexandre Herculano e Fernando Pessoa. Não
incluo Luís Vaz de Camões neste grupo, porque concordo que o seu tempo e lugar
serão sempre os Jerónimos.
Como
irracional é o argumento da falta de recursos financeiros para a não trasladação
dos restos mortais de Manuel da Silva Passos (Passos Manuel) e do compositor
Carlos Portugal, depois da decisão de atribuição de tais honras ter sido tomada.
Que vergonhoso é o argumento monetário, conhecida a gestão incompetente das
contas públicas das últimas décadas, para que não se honrem os melhores
exemplos da nossa Nacionalidade.
A
este propósito apenas me apraz referir a famosa declaração de princípios de
Passos Manuel, que servirá para envergonhar as elites contemporâneas que o
preteriram, em prol de mais uma ou duas autoestradas no litoral, com custos
para todos, menos para quem toma as danosas decisões:
“… E eu antes de ser de esquerda já
era da Pátria. A Pátria é a minha política.”
Como
se poderá alguma vez explicar que, depois de proteladas as honras devidas a estes
dois portugueses, apenas pela mesquinhez de não atribuição de fundos à tarefa,
se trasladarão os restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen e os de
Eusébio da Silva Ferreira (terão as duas personagens anteriores sido esquecidas…
ou eliminadas da lista… seguramente subalternizadas, mesmo que tão só por
desconhecimento, esquecimento ou incompetência pura)?
Como
não incluir o médico, neurologista, investigador, professor, político e
escritor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, prémio Nobel de Fisiologia
ou Medicina em 1949, prémio para o qual foi nomeado por Cinco (5) vezes ao
longo de duas décadas, numa área técnica e do conhecimento científico tão
concorrencial e disputada? Talvez porque a assunção deste mérito destacasse
outros méritos ao Portugal desta época, que insistentemente esta geração de
fazedores de opinião tenta ofuscar.
Por
oposição, parece-me no mínimo controversa a decisão “unânime” de inclusão no
Panteão do Marechal Humberto Delgado, bem como a ausência sequer de discussão
quanto à possível inclusão de António de Oliveira Salazar. Sim, ele mesmo, um dos
portugueses do século XX que mais representa a filosofia do Servir sem se
servir, o obreiro do milagre do superavit
no ano de chegada às finanças públicas após décadas de desvario monetário e do
crescimento anual contínuo do PIB ao ritmo de quase seis por cento ao ano,
exponenciando todos os índices económicos portugueses, a nossa balança
comercial e salvando o país da bancarrota, tudo isto sem endividar o país por
cinco gerações, a única altura do Portugal contemporâneo onde o escudo,
nacional e ultramarino, pôde ombrear com a libra ou o dólar e apresentar-se com
orgulho ao mesmo nível que qualquer outra potência mundial, com a dívida em
percentagem do PIB a descer de aproximadamente 85% para menos de 15%. Tudo isto
e, no fim da sua vida (ou durante), não se ter descoberto uma única conta sua
na Suíça, nas Ilhas Caimão ou no Liechtenstein. Tudo isto sem ter aceite ações
ou quaisquer outros bens (i)/mobiliários de nenhum banco, instituição ou
empresário de renome em troca de favores diretos ou encapotados.
Ainda que, em jeito de balanço (e pela força
da coerência que anteriormente defendi), se possa concluir que o lado negro do
regime do Estado Novo e tudo o que de pior ele representou, a censura, o
autoritarismo, a ditadura ou a perseguição política possa suplantar as virtudes
da sobreposição do valor comum e patriótico aos valores individuais e
sectoriais, e ser assim negada a este cidadão português a entrada nas portas do
Panteão.
Propositadamente
alimentei esta última discussão, sei-a terrivelmente inflamada no interior de
cada português gerado e criado no coração do Estado Novo, mesmo que sem
concurso televisivo à mistura. Mas é sempre importante lembrar que a História é
contada (e romanceada) pelos vencedores, e nunca vista e contada pelos olhos
dos vencidos.
De
uma forma ou de outra, uma sucessão e acumular de incongruências que revelam um
desnorte (ou um norte não consentâneo com a agulha magnética que deve reger os
destinos da Nação Portuguesa), tanto de quem tem poder decisório, como de quem
não se insurge contra o tendencialismo, seja ele republicano, monárquico,
populista, benfiquista, de cariz puramente político-partidário, corporativista
do protetorado das sociedades secretas ou qualquer outro.
Regresso
à lei nº28/2000 de 29 de novembro e ao que me parece o cerne de toda a questão.
O problema não são os critérios, que de tão vagos se dobram à medida das
vontades, o problema são as pessoas que se arvoram no direito de tomar tais
decisões. O ponto um do artigo terceiro, muito convenientemente, atribuiu
competência exclusiva à Assembleia da República na concessão de honras do
Panteão Nacional. Pergunto-vos eu, alguma das bancadas parlamentares correria o
risco de perder o voto dos milhões de amantes do futebol (e de um certo clube
de bairro), questionando, nem que fosse a simples voracidade da tomada de
decisão de proporcionar estas honras a Eusébio? Em duzentas e trinta almas,
todos concordaram sem reservas que os filhos da Nação o deveriam olhar como
modelo de Português a seguir por todas as gerações vindouras, igualando em
mérito Fernando Pessoa ou Pedro Álvares Cabral?
E
se, ao invés de cinco que pensam por duzentos e trinta, que pensam por único e
exclusivo interesse partidário ao invés de patriótico (… e eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha
política. Lembram-se?), dizia eu, e se esta decisão estivesse nas mãos de
uma Comissão de Ética e Valores Nacional, com representantes das mais ilustres
áreas do conhecimento, que se dedicasse, sem pressões corporativistas de
qualquer espécie, à avaliação do mérito absoluto de cada ilustre Português
falecido, passados não um mas Dez anos, à luz de todos os critérios necessários
e que fizessem jus à honra de ombrear com os monstros sagrados de Portugal D.
Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de
Albuquerque, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, ou o Rei dos Reis, o
responsável por toda esta aventura quase milenar… D. Afonso Henriques.
Pessoalmente,
questiono-me ainda a razão da desigualdade proporcional na quantificação de
personagens consideradas ilustres, em oitocentos anos de História, quando
justificámos a presença da Esfera Armilar na nossa bandeira, quando fundámos a
Globalização, quando demos mundos ao Mundo, e os últimos quarenta anos, onde
parece ser fantástica a proliferação de meritórias personagens e, simultaneamente,
nos afundámos como país soberano e dono dos nossos destinos, a um ritmo só
igual à escalada da dívida pública e da assimetria na distribuição da riqueza
em Portugal!
E, de uma vez por todas, não mais ter medo de defender
opiniões, ainda que contrárias à modelação silenciosa a que nos forçam, de modo
a que placidamente aceitemos que os lobos convivam entre os cordeiros
e os, anestesicamente, descarnem ainda em vida.
Afonso Gaiolas
3 comentários:
Na oportunidade dos temas abordados e no pragmaticismo das ideias fica a minha admiração.
Excelente. Não escreveria melhor.
Assino.
Parabéns. Excelente texto digno de ser muito divulgado. Pode ser que água mole...
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