terça-feira, janeiro 14, 2014

Heróis de Portugal


A Pátria Honrai, que a Pátria vos contempla!
Peço emprestado o lema à Marinha Portuguesa, porque é nele que revejo toda a argumentação subjacente ao assunto que a todos move desde a morte de Eusébio da Silva Ferreira.
E devia ser ele o único, porque quaisquer outros, ainda que muito bem fundamentados e adornados, não mais contribuirão que para envergonhar a memória dos ilustres ancestrais que forjaram a Nacionalidade e a mantiveram coesa ao longo de Novecentos Anos de História.
Entristece-me ver colocado ao mesmo nível o Fundador, figura paternalista da Nação Portuguesa e responsável pelo vislumbre da primeira tarde lusitana a um qualquer jogador de futebol, ou o Santo Condestável, o maior Guerreiro Português de sempre, símbolo da coragem e independência lusitana, a uma virtuosa artista vocal. Entristece-me que nos arrepiemos e se nos ericem os pelos da nuca quando se canta o hino… apenas se for antes de um jogo da bola.
É doentia a histeria coletiva em volta destes artistas contemporâneos que, à falta de feitos mais valorosos que voltem a dar o lustre e dignidade que Portugal merece, se tenta que artificialmente da lei da morte se vão libertando, num reconhecimento tácito da mediocridade de valores instalada na sociedade e nas elites que hoje conduzem o país.
Vejamos a sucessão de erros que conduzem a este inqualificável estado atual.
Ideal de Passos Manuel, validado pela Rainha D. Maria II, o Mosteiro dos Jerónimos foi, por decreto de 26 de Setembro de 1836, tornado Panteão Nacional.
O Panteão Nacional foi a fórmula encontrada para agregar e honrar num só local as figuras maiores da Nação Portuguesa, até então dispersos pelos mais variados locais do nosso país.
Posteriormente, este ideal foi alterado pela Lei n.º 520, de 29 de Abril de 1916, que consagrou a Igreja de Santa Engrácia como local definitivo para o Panteão, substituindo o local representativo do melhor da arquitetura Manuelina e do período áureo dos Descobrimentos.
Já em agosto de 2003, em regime de exceção, foi também reconhecido o estatuto de Panteão Nacional ao Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, local onde estão sepultados D. Afonso Henriques e seu filho, segundo Rei de Portugal, D. Sancho I.
Até aqui, tudo pacífico. Decisões consensuais e intelectualmente irrepreensíveis, conquanto adequadamente e sobretudo atempadamente se finalizassem as obras, que de tão demoradas ganharam estatuto de expressão popular.
Analisemos agora os detalhes…
No século XIX, os Portugueses de então decidiram, sabiamente, que apenas o teste à erosão do tempo permitiria uma opinião isenta e sem qualquer carga emocional ou romântica acerca do mérito absoluto (mas também relativo) de cada Português a ser elevado ao Estatuto de Herói Nacional. Decidiram que quatro seriam os anos necessários após a morte, para que os Portugueses validassem a entrada em tão ilustre última morada.
Os Portugueses do Século XXI, muito mais sábios e intelectualmente superiores… decidiram que, ao invés de quatro, bastava um ano após a morte para que a trasladação do corpo pudesse ser efetuada e, desvirtuando todo o espírito do legislador inicial, no caso de Eusébio, tomaram a decisão quanto ao mérito, ainda a missa de sétimo dia não tinha sido celebrada.
Quais os riscos destas decisões?
Que seja a comoção e não a racionalidade a tomar a decisão… ou que a pressão popular o faça, que as eleições estarão sempre à distância de uma dança de cadeiras.
Todos sabemos que as pessoas tendem a tornar-se muito melhores quando perecem, que todas as suas qualidades são exponenciadas e os seus defeitos menorizados ou suprimidos. É inevitável, a beleza da condição humana também se constrói neste perdão póstumo que a todos nos expurga dos pecados terrenos. Mas a consciência desta nossa fraqueza deve impedir-nos de tomar decisões apressadas, toldadas de irracionalidade emocional, das quais nos venhamos a arrepender no futuro.
E para que possamos justamente minimizar estas injustiças relativas, convém então conhecer as regras, o padrão requerido para que o estatuto de herói seja enfim  merecido.
A lei nº28/2000 de 29 de novembro auxilia-nos na resposta. Diz o número um do artigo segundo da referida lei, que as honras do Panteão se destinam a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.
Concordo em absoluto.
Mas as pessoas valem como um todo. E holisticamente devem ser considerados os seus atos ou comportamento, para que se possam tornar uma referência para todos os Portugueses que lhe sucederem.
Ser um grande jogador de futebol é suficiente?
Ser uma grande cantora é suficiente?
Para ambos a resposta só será afirmativa se, aliado ao virtuosismo do seu talento, estiver um ideal de serviço patriótico e uma conduta moral e social consentânea com o ideal anteriormente descrito, acima de quaisquer interesses pessoais ou corporativos.
Não penso que, nem num nem noutro caso, Amália e Eusébio, se reúnam estas condições. Perdoem-me os familiares, os amigos ou os seus simpatizantes, mas Portugal tem necessariamente que ser maior que o indivíduo, sem tendencialismos.
E o mesmo se aplica, por coerência de raciocínio, a Aquilino Ribeiro. Num tempo presente em que os fins nunca poderão justificar nem desculpar os meios, não pode ser admissível ser atribuído o estatuto de Herói de Portugal a um português que praticou atos terroristas, atentando contra a vida de outros portugueses (atentado de 28 de novembro de 1907, preso em flagrante delito… portanto, mesmo que se não queira aliá-lo diretamente ao regicídio, tamanha atrocidade me basta…), quaisquer que eles fossem, por motivos ideológicos e de oposição ao regime vigente. Ainda que fantástico escritor romântico, inegavelmente um dos melhores da sua geração…
Por outro lado, não parece lógica nem racionalmente explicável a trasladação do corpo de Almeida Garrett, em dezembro de 1966, do Mosteiro dos Jerónimos (Panteão Nacional à data do galardão honorífico) para o novo Panteão, na Igreja de Santa Engrácia. Percebe-se a permanência de toda a Realeza no Mosteiro dos Jerónimos (para que, se fosse esse o critério, o olhássemos tacitamente como Panteão Real), mas nele permaneceram Alexandre Herculano e Fernando Pessoa. Não incluo Luís Vaz de Camões neste grupo, porque concordo que o seu tempo e lugar serão sempre os Jerónimos.
Como irracional é o argumento da falta de recursos financeiros para a não trasladação dos restos mortais de Manuel da Silva Passos (Passos Manuel) e do compositor Carlos Portugal, depois da decisão de atribuição de tais honras ter sido tomada. Que vergonhoso é o argumento monetário, conhecida a gestão incompetente das contas públicas das últimas décadas, para que não se honrem os melhores exemplos da nossa Nacionalidade.
A este propósito apenas me apraz referir a famosa declaração de princípios de Passos Manuel, que servirá para envergonhar as elites contemporâneas que o preteriram, em prol de mais uma ou duas autoestradas no litoral, com custos para todos, menos para quem toma as danosas decisões:
“… E eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política.”
Como se poderá alguma vez explicar que, depois de proteladas as honras devidas a estes dois portugueses, apenas pela mesquinhez de não atribuição de fundos à tarefa, se trasladarão os restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen e os de Eusébio da Silva Ferreira (terão as duas personagens anteriores sido esquecidas… ou eliminadas da lista… seguramente subalternizadas, mesmo que tão só por desconhecimento, esquecimento ou incompetência pura)?
Como não incluir o médico, neurologista, investigador, professor, político e escritor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1949, prémio para o qual foi nomeado por Cinco (5) vezes ao longo de duas décadas, numa área técnica e do conhecimento científico tão concorrencial e disputada? Talvez porque a assunção deste mérito destacasse outros méritos ao Portugal desta época, que insistentemente esta geração de fazedores de opinião tenta ofuscar.
Por oposição, parece-me no mínimo controversa a decisão “unânime” de inclusão no Panteão do Marechal Humberto Delgado, bem como a ausência sequer de discussão quanto à possível inclusão de António de Oliveira Salazar. Sim, ele mesmo, um dos portugueses do século XX que mais representa a filosofia do Servir sem se servir, o obreiro do milagre do superavit no ano de chegada às finanças públicas após décadas de desvario monetário e do crescimento anual contínuo do PIB ao ritmo de quase seis por cento ao ano, exponenciando todos os índices económicos portugueses, a nossa balança comercial e salvando o país da bancarrota, tudo isto sem endividar o país por cinco gerações, a única altura do Portugal contemporâneo onde o escudo, nacional e ultramarino, pôde ombrear com a libra ou o dólar e apresentar-se com orgulho ao mesmo nível que qualquer outra potência mundial, com a dívida em percentagem do PIB a descer de aproximadamente 85% para menos de 15%. Tudo isto e, no fim da sua vida (ou durante), não se ter descoberto uma única conta sua na Suíça, nas Ilhas Caimão ou no Liechtenstein. Tudo isto sem ter aceite ações ou quaisquer outros bens (i)/mobiliários de nenhum banco, instituição ou empresário de renome em troca de favores diretos ou encapotados.
Ainda que, em jeito de balanço (e pela força da coerência que anteriormente defendi), se possa concluir que o lado negro do regime do Estado Novo e tudo o que de pior ele representou, a censura, o autoritarismo, a ditadura ou a perseguição política possa suplantar as virtudes da sobreposição do valor comum e patriótico aos valores individuais e sectoriais, e ser assim negada a este cidadão português a entrada nas portas do Panteão.
Propositadamente alimentei esta última discussão, sei-a terrivelmente inflamada no interior de cada português gerado e criado no coração do Estado Novo, mesmo que sem concurso televisivo à mistura. Mas é sempre importante lembrar que a História é contada (e romanceada) pelos vencedores, e nunca vista e contada pelos olhos dos vencidos.
De uma forma ou de outra, uma sucessão e acumular de incongruências que revelam um desnorte (ou um norte não consentâneo com a agulha magnética que deve reger os destinos da Nação Portuguesa), tanto de quem tem poder decisório, como de quem não se insurge contra o tendencialismo, seja ele republicano, monárquico, populista, benfiquista, de cariz puramente político-partidário, corporativista do protetorado das sociedades secretas ou qualquer outro.
Regresso à lei nº28/2000 de 29 de novembro e ao que me parece o cerne de toda a questão. O problema não são os critérios, que de tão vagos se dobram à medida das vontades, o problema são as pessoas que se arvoram no direito de tomar tais decisões. O ponto um do artigo terceiro, muito convenientemente, atribuiu competência exclusiva à Assembleia da República na concessão de honras do Panteão Nacional. Pergunto-vos eu, alguma das bancadas parlamentares correria o risco de perder o voto dos milhões de amantes do futebol (e de um certo clube de bairro), questionando, nem que fosse a simples voracidade da tomada de decisão de proporcionar estas honras a Eusébio? Em duzentas e trinta almas, todos concordaram sem reservas que os filhos da Nação o deveriam olhar como modelo de Português a seguir por todas as gerações vindouras, igualando em mérito Fernando Pessoa ou Pedro Álvares Cabral?
E se, ao invés de cinco que pensam por duzentos e trinta, que pensam por único e exclusivo interesse partidário ao invés de patriótico (… e eu antes de ser de esquerda já era da Pátria. A Pátria é a minha política. Lembram-se?), dizia eu, e se esta decisão estivesse nas mãos de uma Comissão de Ética e Valores Nacional, com representantes das mais ilustres áreas do conhecimento, que se dedicasse, sem pressões corporativistas de qualquer espécie, à avaliação do mérito absoluto de cada ilustre Português falecido, passados não um mas Dez anos, à luz de todos os critérios necessários e que fizessem jus à honra de ombrear com os monstros sagrados de Portugal D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, ou o Rei dos Reis, o responsável por toda esta aventura quase milenar… D. Afonso Henriques.
Pessoalmente, questiono-me ainda a razão da desigualdade proporcional na quantificação de personagens consideradas ilustres, em oitocentos anos de História, quando justificámos a presença da Esfera Armilar na nossa bandeira, quando fundámos a Globalização, quando demos mundos ao Mundo, e os últimos quarenta anos, onde parece ser fantástica a proliferação de meritórias personagens e, simultaneamente, nos afundámos como país soberano e dono dos nossos destinos, a um ritmo só igual à escalada da dívida pública e da assimetria na distribuição da riqueza em Portugal!
E, de uma vez por todas, não mais ter medo de defender opiniões, ainda que contrárias à modelação silenciosa a que nos forçam, de modo a que placidamente aceitemos que os lobos convivam entre os cordeiros e os, anestesicamente, descarnem ainda em vida.

Afonso Gaiolas

3 comentários:

Anónimo disse...

Na oportunidade dos temas abordados e no pragmaticismo das ideias fica a minha admiração.

António Luís disse...

Excelente. Não escreveria melhor.
Assino.

Antonio Soares Leal disse...

Parabéns. Excelente texto digno de ser muito divulgado. Pode ser que água mole...
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