segunda-feira, março 14, 2005

Predação

A paternidade tem o dom de nos forçar a pensar, edificar e emitir opiniões, com a responsabilidade de as mesmas constituírem traço indelével na personalidade dos que educamos, em assuntos que habitualmente não nos ousaríamos debruçar, quer por nos deixarmos absorver pela azáfama quotidiana, quer por pura preguiça mental. Opiniões que rapidamente transitam da futilidade da paixão clubística aos valores mais profundos da espiritualidade humana.
É comummente aceite ser relativamente simples demonstrar a separação do Bem e do Mal, no seu sentido mais cru, sendo prodigiosa a capacidade de assimilição deste conceito por parte das crianças (recordo-me, a propósito, das expressões do meu filho de dois anos e meio perante a personagem encarnada pelo ser computorizado Sméagol/Gollum em "O Senhor dos Anéis", que em função da personalidade emergente do momento, caracterizava de "um bocadinho bom", ou "um bocadinho mau"!*).
Enquanto o Bem se mantém cristalino e o Mal obscuro, a tarefa formadora resume-se ao acompanhamento do frenesim catalogador de bons para um lado e maus para outro, sem rodeios nem apelos a instâncias superiores, que a pureza incorruptível das crianças torna desnecessários.
Porém, quando os dois termos se imiscuem, tornando cinzento o que outrora fora preto e branco, tudo se complica.
Vem isto a propósito da mortandade que caracteriza o mundo em que vivemos. Escolhi esta agressiva palavra, por querer abranger todas as relações entre seres vivos que neste planeta habitam. Por querer factualizar a necessidade permanente de algo ou alguém ter que morrer para que a vida continue. É a explicação deste paradoxo, não apenas na visão científica, mas na vertente moral, que se torna num dos maiores desafios com que até hoje alguém se deparou.
É fácil ensinar a cadeia alimentar e orgulhosamente mostrar o Homo Sapiens Sapiens no topo, olhando sobranceiramente para todas as criaturas sob o seu domínio (é interessante notar o facto de, nas ilustrações relativas a este tema, os humanos serem constantemente suprimidos e substituídos pelos predadores irracionais). Pois... parece que nos orgulhamos de, contrariando todas as expectativas, estarmos no topo da cadeia, mas simultaneamente sentimos a suprema ignomínia por dela não nos conseguirmos libertar!
Sou terminantemente contra a ocultação da verdade às crianças, na esperança de as proteger. Na verdade, apenas contribuímos para a perda daquela confiança preciosa que a nossa descendência em nós deposita, e que nos faz sentir no rumo certo da nossa caminhada. Nunca ocultei portanto a proveniência dos alimentos com que se confeccionam as refeições que os fazem crescer e ficar fortes, nem o destino de todos os seres, quando a última centelha de vida se extingue (a visão que acredito ser a correcta... de que tudo estará então consumado).
Apesar de não deixar de sentir o peso da responsabilidade humana pelo atraso no conhecimento científico, que já tivesse levado à sintetização química de todas as substâncias necessárias ao regular funcionamento do nosso organismo e à sua aplicação nas doses diárias ideais, de modo a permitir que as palavras fome e obesidade pudessem fazer companhia aos pterodáctilos e seus irmãos; de modo a nos permitir olhar para a cadeia alimentar do lado de fora, e não sentados no topo. Apesar de tudo isso, aceito ainda a mortandade das espécies que considerámos adequadas (curiosamente aquelas que mais se mostraram amistosas, perdão, domesticáveis) a uma alimentação equilibrada, na esperança de que apenas seja temporariamente. Para os que me estão a acusar neste momento de querer "plastificar" um dos poucos prazeres genuínos que nos restam, lembrarei um episódio da saudosa série "Quinta Dimensão", que sumariamente retratava a vinda à Terra de um conjunto de seres superiores que pretendiam levar nas suas naves tantos humanos quanto possível, para poderem dar uso a um livro intitulado "Como cozinhar para humanos". Só no final, quando as portas das naves já se haviam fechado, é que se percebeu que a palavra "para" tinha sido estrategicamente acrescentada ao título original do livro alienígena. Lembro-me de, na altura, me ter indignado perante tal façanha, que me pareceu profundamente desprezível. A verdade é que custa ter de encarar o problema do ponto de vista de quem é ou será a vítima, piorando um pouco se se tiverem criado laços de confiança prévios. Daí que tudo seja uma questão de escala, tornando absurda a ideia do vegetarianismo por piedade aos animais. Ou estamos fora, ou inteiramente comprometidos com a inevitável cadeia, não havendo moralidade para sentir indignação perante o cenário, que espero se mantenha no domínio da ficção, de existirem degraus acima daquele onde nos sentamos neste momento.


* Devo dizer que rejeito liminarmente qualquer acusação de desrespeito pela classificação dada aos filmes em função da idade a que se destinam. Considero-as perfeitamente válidas, quando não existe supervisão.

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