A minha última divagação prendeu-se com a ainda imperiosa necessidade global de eliminar seres vivos para que se assegure a sobrevivência da nossa espécie.
Pois bem, hoje reflicto sobre algo bem mais sombrio... a imperiosa necessidade de eliminar ou flagelar seres vivos para gáudio de quem, por razões que só Freud provavelmente descortinaria, encontra prazer e divertimento no sofrimento alheio.
Longe da nobre atitude dos índios da América do Norte, que enalteciam publicamente o sacrifício dos animais que abatiam, por servirem para saciar a fome de todos, conhecemos hoje, virada que está a página do século vinte, e com um bom par de palavras escritas no século vinte e um, um grupo heterogéneo de pessoas, que de comum apenas têm o desrespeito pela vida, tal como a conhecemos.
Apelidar-me-ão de fundamentalista, mas, no âmago da questão, não encontro diferenças entre os caçadores desportivos, os profissionais e os adeptos das touradas, os defensores da elegantíssima manifestação de riqueza a cavalo, que dá pelo nome de caça à raposa, ou os incitadores, patrocinadores, apostadores e assistentes de lutas de cães, de galos, de cães com ursos (de garras devidamente arrancadas, que a peleja quer-se justa), ou de qualquer outra combinação macabra que uma mente desequilibrada possa congeminar.
Por saber da celeuma que tais palavras provocam em muitos milhares de portugueses que, por um lado, não consideram o seu passatempo ou paixão, algo de desonroso ou condenável, e por outro, não se revêem nas restantes personalidades integrantes do grupo atrás mencionado, passarei a explicar as razões de tal agregação e condenação.
A caça, no seu sentido mais puro, sempre existiu, e existirá infelizmente durante mais algum tempo. Mas não é da caça, integrada no conceito da cadeia alimentar, aquela a que me refiro, mas da caça pelo prazer de matar, pela satisfação dos troféus conquistados, quer sejam eles chifres, dentes, garras, ou o animal no seu todo. É impossível encontrar argumentos que sustentem a eliminação de qualquer espécie, com base na necessidade de divertimento, de acréscimos artificais de adrenalina e exibicionismo humano. É tão fácil, nos dias de hoje, encontrar um substituto para esta prática, cumprindo os mesmos objectivos, mas não eliminando qualquer ser vivo (eliminação que será permanente, mesmo para os crentes na versão do cristianismo, uma vez que não existe versão animal para os lugares à direita, ou mesmo à esquerda do Pai).
No caso das touradas, é interessante ver a posição de quem, tentando defender o indefensável, ainda se arvora protector do animal que vê flagelado. Alegam os defensores da tourada (irrelevante diferenciar se de morte ou à portuguesa), que os sortudos animais só existem para que o espectáculo continue, e que, caso contrário, já se teriam extintinguido há muito. Ainda que isso correspondesse à verdade (não estou em condições de o verificar), quereria porventura dizer que os animais, por infinito agradecimento aos seus benfeitores, assinariam um "cheque-lombo" em branco, para toda a eternidade, e todos os dias sem cessar agradeceriam ao criador cada farpa, e porque não, cada orelhinha cortada, ou ainda, glória suprema, cada morte na arena (se ovacionada a preceito) gentilmente concedida. Pela mesma ordem de ideias, qualquer espécie em vias de extinção que fosse protegida, por quem quer que fosse, teria uma dívida de sangue para com o seu defensor, que poderia ser cobrada em qualquer cenário ou arena, para deleite de todos quantos quisessem assistir. Seria sem dúvida então curioso assistir à "lobada" ou à "lince-ibericada", cumpridas a preceito por todos os que, directa ou indirectamente, contribuem para a preservação destas espécies.
Com a tradição inglesa de caça à raposa não perderei muito tempo, uma vez que, felizmente, alguns bons Homens com algum poder, resolveram recentemente proibir tal manifestação medieval.
Quanto às lutas, convém distinguir desde já que, para aqueles cuja frase pré-formatada é a de que os Homens também o fazem, que tudo se resume a uma palavra que faz toda a diferença... voluntarismo. É legítimo (porque cada pessoa é dona de si própria), que dois seres humanos maiores e vacinados, se combinem encontrar num ringue de meia dúzia de metros quadrados, para se esfacelarem mutuamente até que alguém desfaleça ou chegue a hora do jantar, o que acontecer primeiro. Já com os animais o caso muda de figura. É verdade que os animais naturalmente lutam. Mas não é legítimo que os treinemos especificamente para esse fim, nem que os forcemos a tal (que bem bastam as desavenças que envolvem saias... mesmo no mundo animal), mas pior, que vejamos em tudo isso uma forma de diversão, de ganhar dinheiro, ou apenas de passar o tempo.
Em todo o mundo, em todas as épocas, se cometeram barbáries, algumas delas, como demonstrado, se prolongaram até aos dias de hoje. Não defendo que varramos a nossa herança histórica para debaixo do tapete, mas existe uma altura em que devemos, em nome da coerência e da racionalidade, perceber a imoralidade de determinadas práticas que, em nome da cultura e identidade grupal se mantêm vivas e, de uma vez, evoluir para um projecto de Humanidade com objectivos mais altruistas e consentâneos com o nível de desenvolvimento cognitivo que todos julgamos possuir.
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