sábado, abril 14, 2007

Penas de pavão ou pena dos pavões!

Tarde de sábado de alerta, num dia atípico para a tradição belga. Vinte e sete graus Celsius e um sol de fazer inveja à reputação mediterrânica de paraíso balnear.
Um pavão passeia-se, ora à esquerda, ora à direita do cinescópio, a dois metros da minha poltrona. É impossível ficar alheio à euforia colorida e à beleza natural dos seus adornos. Enfim... não encontraria melhor exemplo para definir a expressão... pavonear-se!
Baixo os olhos para me perder na imensa monotonia de verde-azeitona do meu fato, e não deixo de me sentir diminuído no índice potencial de captação de fêmeas.
Será que é apenas disso que se trata, no caso dos humanos? A discussão é mais profunda do que parece...
Já passei por todas as fases, da inocência da nudez natural, à adolescência tribal, pela acomodação à filosofia do vestir despreocupado e, por defeito de profissão, à uniformização pura e simples.
Sinto-me confortável, portanto, para qualificar os trapos que diariamente me (nos) cobrem.
Podia começar com uma frase do tipo, "No princípio era a nudez", e por aproximação à bíblia e à evangelização do mundo, tentar demonstrar que a religião teve um papel preponderante no envergonhamento global. Malditas tribos que ainda não se cobrem, que não conhecem o decoro e a discrição, e que não se ralam nada com isso... Imagino onde arderão de tanto pecado junto...
É óbvio que o pensamento é redutor, mas não retira ao credo religioso uma enorme fatia de responsabilidade no assunto. (Porque é um defeito e não uma virtude, que ninguém tenha dúvidas disso!)
Mas se o tiverem, tentem perceber um dia o ponto de vista do decoro e da discrição de quem vê o mundo pelo rendilhado da veste que representa um dos mais elevados graus de degradação da condição feminina.
Mas nós estamos tão avançados, dirão... que até o lencinho na cabeça já condenamos...
É só pousar a mão na consciência e perceber o nosso lugar na sequência de eventos, e o grau de culpabilização de cada um. E com que idade iniciamos as novas gerações nessa culpabilização.
Tudo depende, no fundo, de que lado recebemos a luz decomposta pelo prisma... e, mais importante que isso, de quem nos fornece a luz!
Mas, assumidas que estão as vestes que escondem, como naturalmente estarão as vestes que protegem... quero debruçar-me sobre as vestes que decoram.
o mundo da moda é de uma natureza desconcertante. Mas não tanto quanto a mentalidade vigente. Vivemos um tempo em que todos procuram o graal da individualidade, ainda que cada vez mais iguais a todos os demais. Só assim se explicam os obscenos monopólios de meia dúzia de marcas, que regem a consciência grupal do que é aceitável ser exibido a cada ano que passa.
Gostava de ultrapassar isto e focalizar-me no efeito protector, mas há um risinho interior que me impede. A galhofa de imaginar a maior parte das peças do nosso guarda-roupa é mais forte do que eu. Mea culpa também, porque também eu, de quando em vez, faço uso da tira de tecido opressora do pescoço, que dele pende ociosamente e que tanto uso pode ter no dia-a-dia de um ser humano, com um sem número de aplicações que agora não me consigo recordar...
E escuso de avançar para o vestuário feminino...
Se ao menos as pessoas fizessem o exercício de estilo de se colocarem na pele dos seus trinetos, em idade adulta, a admirar a figura dos trisavós, nas suas bizarras vestimentas...
Para além de todo este conceito subjectivo de beleza, o que defendo é que apontemos baterias ao alvo correcto, ao invés de desperdiçarmos potencial cerebral em ressuscitar, a cada 30 ou 40 anos, as roupas que então fizeram furor nas pistas de dança ou salões de baile.
É chegada então a hora da sujeição aos comentários jocosos dos criadores de moda, que pensarão "Olha-me este com a mania de imitar os livros de qualidade duvidosa de ficção científica". Curioso seria demonstrar quanta da ficção científica do passado se tornou na realidade actual (e que bem calçado que estou se me lembrar do senhor Leonardo di ser Piero, vindo da pequena localidade de Vinci, ou ainda de Júlio Verne, de um tempo onde já não era importante saber-se de onde se vinha).
Pois bem, o meu ideal de vestuário passa por uma única peça, integral, ajustável ao corpo como uma segunda camada epidérmica (entram em cena os apupos dos detractores da exposição da excessiva gordura corporal, especialmente se da mesma forem fiéis depositários), tão ou mais flexível que a versão orgânica, isotérmica e exteriormente estanque, mas permeável à transpiração e respiração cutânea, com um índice imaculado de protecção contra o espectro de radiação electromagnética que a nossa atmosfera começa a ter dificuldade em filtrar, contra a oferta de Prometeu aos Homens e contra as agressões potenciais de vértices afiados dos diversos elementos sólidos do nosso corpo celeste.
Seria deselegante se esquecesse a capacidade de suporte às partes do corpo mais sujeitas à acção impiedosa da gravidade e a facultação da invulgar característica que Grenouille, personagem maior da imaginação de Süskind, tentou sordidamente ocultar.
Impressionante caderno de encargos, bem sei, mas ainda assim não tenho a certeza de ser tão eficaz ou útil para o mar de doutores e engenheiros do nosso país como o fiel binómio fato-gravata numa tarde de Verão.
Todo este devaneio perde, no entanto, todo o sentido se descontextualizado do ideal subjacente, a tradução da mais básica das "verdades de La Palisse". Cada corpo é único e é essa individualidade que merece ser realçada, não uma qualquer demonstração de riqueza na forma de símbolo representativo de um criador de moda. Talvez assim a naturalidade voltasse lentamente a morar paredes meias com a beleza, e abandonássemos a idiotice de tentar concorrer com o protagonista animal da minha excitante tarde de sábado.
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Saudades,
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Afonso Gaiolas

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