quinta-feira, maio 24, 2012

2666 espinhos na fronteira sul da planta dos pés

Não tenho a ilusão do igualitarismo mundial.
Tão-pouco sou ingénuo ao ponto de pensar que o altruismo alguma vez comandará a política externa mundial.
Mantenho, no entanto, a esperança de um dia olhar para as Nações Unidas e acreditar que existe uma voz una e independente a gerir os interesses comuns de toda a Humanidade.
Até lá, sinto-me na obrigação de largar o conforto da maioria silenciosa e mostrar o quão incongruentes podem ser as atitudes de quem acalenta a esperança de conseguir moldar e moralizar o mundo à sua imagem e semelhança.
Em Setembro de 2001, em resposta a um hediondo ataque terrorista que vitimou 2996 pessoas, os E.U.A., liderando uma ampla coligação de Estados, iniciaram o que ficou denominado como a "Guerra ao Terrorismo".
Afeganistão, Filipinas, Somália, toda a região do Saara/Sahel, Iraque, Paquistão, Iémen e o enclave de Caxemira passaram a ser palco de acesa luta contra o terrorismo, bem como contra o tráfico de armas e de droga, atividades criminosas que ascenderam a baluartes representativos do que seria necessário erradicar para que despontasse uma nova era civilizacional.
Concordo integralmente que, eliminando estes três exemplos de "selvajaria humana", todos viveríamos melhor, mais seguros e com mais hipóteses de vingar como espécie.
Contudo, não é moralmente admissível que, uma vez assumida ingerência mundial indiscriminada, se force uma pala em cada olho, ignorando toda a lateralidade... apesar de esta praticamente nos bater à porta.
Faça por momentos o exercício de imaginar o pior destino turístico que o sub-consciente lhe ditar... 
Decerto nunca equacionou umas férias de sonho em Cabul, Kandahar, Herat ou Ciudad Juarez... pois não?
Por esta altura, o leitor questiona-se... que raio de agrupamento de cidades... e o que é que a quarta tem que ver com o grupo anterior das três maiores cidades do Afeganistão?
Para os mais distraídos, Ciudad Juarez situa-se no México, na região de Chihuahua, sendo uma das maiores cidades fronteiriças com os E.U.A..
Podia ser mundialmente conhecida pela indústria de "maquiladoras", conceito castelhano que traduz a atividade comercial e fabril de importação de materiais (livre de tarifas e impostos) para transformação, processamento ou montagem, e posterior exportação do produto final.
No entanto, ao invés da prosperidade económica e social expectável, a cidade assiste impotente a uma espiral descontrolada de terrorismo, tráfico de armas e de droga. Exatamente o mesmo trio de atividades anteriormente identificadas como alvo a abater pelos paladinos da liberdade.
Dir-me-ão... vamos então comparar valores... e isto certamente envergonhará quem se quer ombrear com um cenário de "guerra".
Vamos então a isso!
Desde 2001 (começo das hostilidades) até hoje, no teatro do Afeganistão, morreram entre 20000 e 49600 pessoas, consoante a fonte consultada. Concentremo-nos apenas no pior dos cenários. É conveniente realçar que estamos a falar de operações ofensivas de guerra e seus derivados. Temos pois que, em onze anos, perderam a vida aproximadamente um pouco menos de 50000 pessoas.
E se lhe disser que, no México, entre 2007 e 2011, ou seja, em menos de metade do intervalo temporal utilizado para analisar o Afeganistão, perderam a vida (em consequência de terrorismo e tráfico de armas / droga) 47515 pessoas. 
Que só em Ciudad Juarez, todos os anos, perdem a vida pelas mesmas razões quase tantas pessoas quantos todos os soldados da coligação no Afeganistão pereceram desde 2001 até hoje (3007 em Maio de 2012).
Que só no ano de 2010, nesta cidade, perderam a vida 2738 pessoas em consequência destas atividades ilícitas e que tudo permanece sob um manto de impunidade que ninguém parece conseguir contrariar. Se não lhe parece demasiado atroz, imagine que, proporcionalmente, Portugal teria que se debater com mais de 5000 homícidios por ano, só na região da grande Lisboa (quando na realidade estes raramente ultrapassam a dezena e meia).
Falta ainda deitar por terra o conceito de que terrorismo só conta se for segundo a definição pela qual fomos "belicisticamente" formatados.
Entremos então na discussão académica verbal.
Define-se terrorismo pelo uso da violência, física ou psicológica, em ataques localizados a elementos ou instalações de um governo ou da população governada, de modo a incutir medo e terror, e assim obter efeitos psicológicos que ultrapassem largamente o círculo das vítimas, estendendo-se ao resto da população do território.
Se uma Nação, no espaço de dez anos perder mais de 4000 mulheres e meninas, fruto de estupro, violência e assassinato (não necessariamente por esta ordem) e se debater com mais de 400 desaparecidas, cuja esperança familiar reside apenas em encontrar um corpo que se possa chorar, num flagelo de proporções tais que gerou uma nova palavra - feminicídio... será que este ato encaixa na definição de terrorismo?
Se os corpos de dezenas de assassinados forem expostos, decapitados, pendurados em locais públicos movimentados, ou se assassinarem seletivamente os membros da autoridade, de modo a gerar o pânico, descredibilizar o governo instituído e desequilibrar a balança de poder para o lado dos criminosos inssurretos... será que estes atos encaixam na definição de terrorismo?
Não tenho dúvidas que os líderes das redes de tráfico humano, de armas e de droga do México fazem uso de violência física e psicológica, em ataques localizados a elementos de governação (forças de segurança) e à população governada (quase 50000 mortos em 5 anos), de modo a incutir medo e terror (expondo publicamente os corpos e selecionando as vítimas), e assim obtendo efeitos psicológicos que se estendam ao resto da população (descridibilizando as autoridade, estendendo a sua teia de poder e consequentemente exercendo a sua atividade criminosa impunemente).
Se isto não encaixa na definição de terrorismo... é melhor que se lhe efetue uma revisão!
Ora bem, voltemos ao vizinho que corre mundo e meio para expurgar a humanidade de todos os males.
Seria de esperar uma atenção especial a quem consigo faz fronteira. 
Seria de esperar uma ação concertada com as autoridades locais para erradicar, gradual mas consistentemente esta brutalidade a que o povo mexicano está sujeito.
Não seria de esperar a construção de um muro de contenção, na esperança de que a ocultação fizesse desaparecer o problema.
Não seria de esperar que se imitasse o tristemente exemplo passado de Berlim, ou o presente exemplo de Israel, de Marrocos no Saara Ocidental ou da Coreia, e se murassem 1030 quilómetros de fronteira, inclusivé mar adentro, de modo a resguardar o bom povo do norte da doença, negando simultaneamente qualquer possibilidade de cura aos pobres diabos do sul.
Falta de visão... para não dizer inteligência... pois as tão badaladas drogas recreativas que continuam e continuarão a atravessar a fronteira, com ou sem muro, contribuem cada vez mais para a degradação física e psicológica de grande parte da juventude emergente que terá nas mãos a chave do progresso ou retrocesso civilizacional das estrelas e das riscas.
Talvez tenhamos todos, ao longo das últimas décadas, criado demasiadas expetativas...
Deveria ter suspeitado que um país que tem por companhia o Afeganistão, a China, a República Democrática do Congo, a Coreia do Norte,o Iémen, o Irão, o Iraque, a Líbia, o Paquistão, a Serra Leoa, a Síria, o Sudão, o Uganda, o Vietname, entre outras lendas mundiais de renome no que diz respeito à aplicação da pena de morte como castigo válido (só suplantado em quantidade de execuções pela China), teria alguma dificuldades no capítulo da capacidade de  julgamento imparcial.
Deveria ter suspeitado que um país que prevê o enforcamento, a eletrocussão, o fuzilamento e... surpresa das surpresas... a câmara de gás como métodos válidos de execução da pena de morte, dificilmente estaria num estágio civilizacional que lhe permitisse ajudar outros sem esperar receber nada em troca.
Portugal, por temporariamente lhe terem oferecido a ilusão igualitária de privar com os membros do clube dos que podem fazer explodir engenhos com mais barulho do que os outros (membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas) e por felizmente já ter ascendido a um outro estádio evolutivo, tem a obrigação de tentar remover as malditas palas que ainda afetam a visão daqueles que, apesar de terem a máquina que faz o dinheiro aceite em todo o mundo, não conseguiram ainda comprar nas praças financeiras internacionais, nem bom senso, nem de todos, o bem mais escasso e precioso... a filantropia!
Mesmo que a razão sejam apenas os mais de seiscentos anos que levamos de avanço... sabe bem sentir que o nosso país é tão melhor que os que se apregoam melhores.

Um abraço,

Afonso Gaiolas

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