Antes do Fogo.
Depois do Fogo.
Muito pouca justiça se tem atribuído a tão importante peça da engrenagem evolucionista humana, responsável, em grande parte, pela prosperidade, proliferação e elevação da raça ao estatuto de dominante planetário.
O fascínio da crepitação, da luz hipnotizante, do calor reconfortante numa noite fria, da iluminação que afasta os predadores... os vivos e os que povoam a imaginação na escuridão, faz com que todos, secretamente, tenhamos uma réstia de monomania incendiária... mas que, a bem da sanidade coletiva, continuamente recalcamos no mais profundo íntimo do nosso ser.
Se o reconhecimento de uma fraqueza nos torna conscientes de um problema potencial, ignorarmos as suas causas torna-nos imbecis, porque incapazes de tornear uma ameaça, que neste caso não se constitui local ou regional, mas sim de proporções nacionais.
A versão romanceada da relação humana com o fogo, que acima descrevi, pouco ou nada tem que ver com a realidade portuguesa do século XXI, no que concerne aos incêndios florestais que deflagram, ano após ano no nosso território, qual fatalidade com a qual todos nos teremos que habituar a conviver no período estival (e talvez fora dele... se necessário for para equilibrar balancetes).
A versão negra desta história assume mesmo contornos dantescos, se a analisarmos à luz da angústia e sofrimento causados à população diretamente afetada pela fúria descontrolada do mais quente dos quatro elementos, não raras vezes sendo despojada do seu sustento e modo de vida, quando não da habitação única e permanente e de todos os bens pessoais nela conservados.
Será que é inevitável?
A avaliar pelo discurso politizado que incompreensivelmente apelida o Verão como "época de fogos", tudo apontaria para este cenário.
Estou convicto, no entanto, que as mesmas pessoas que desta forma fatalista discursam e apregoam medidas avulsas de "combate" ao fogo e não ao flagelo da ignição (criminosa ou negligente), nunca tentaram iniciar uma fogueira sem um método tecnologicamente avançado (onde se incluam fósforos, isqueiros, entre outros truques de prestidigitador fajuto).
Diz-se que o risco é enorme, porque existe muita matéria combustiva e muito calor. Pois bem... então toda a região alentejana seria uma pira trimestral, enquanto houvesse pasto seco e quarenta graus Celsius nos termómetros, à sombra preguiçosamente estendidos.
Mas eis que não... não só o Alentejo não se constitui uma mega-pira no estio, como ainda consegue olhar para norte do rio Mondego e observar, qual espetador da volta a "Portugal" em bicicleta, milhares de hectares de floresta nacional a serem trucidados, dia após dia, não por uma, mas por MILHARES de deflagrações incendiárias.
Abandone o ecrã do seu computador e tente, à luz do mais potente raio de sol que fustigue o nosso território, provocar uma chama com um qualquer método primitivo.
Sem necessidade de seguir a ordem que agora estabeleço, use pedras, paus, concentração solar com pedaços de vidro ou plástico aleatoriamente escolhidos, entre outras artimanhas que se lembre quando a insolação começar a fazer os seus efeitos.
No final, olhará para a palavra inevitabilidade com outros olhos. Sim, porque as descargas elétricas sem pluviosidade associada (vulgo trovoadas secas), não constituem amostra credível - 1 a 5% na maior parte dos estudos nacionais e internacionais - que desculpabilize a intencionalidade ou a negligência.
Parece-lhe razoável que tenhamos tido mais de 300 incêndios por dia, todos os dias do mês de agosto de 2010?
Que tenhamos tido, num só dia do mês de março deste ano, as mesmas três centenas de deflagrações não controladas?
Ou que, jogando com os números, tivéssemos terminado o ano de 2009 com o quase redondo número de 29700 incêndios, o que perfaz uma média aproximada de oitenta por dia?
A mim parece-me ainda menos razoável que o quarto poder se subjugue ao poder promocional de uma boa labareda que ocupe toda a caixa mágica, ao invés de açoitar verbalmente os incendiários, fortuitos ou intencionais, morais ou materiais, social e publicamente condenando o ato.
No fundo, condenando a causa sem exaltar o efeito.
E porque a maioria é e será sempre silenciosa (e, já agora, bem comportada), caberá à Autoridade Nacional de Proteção Civil transformar as sucessivas campanhas inócuas de prevenção de fogos florestais, em algo que a minoria que estraga realmente perceba.
Neste complexo processo, em que todas as ações estão interligadas, também os poderes legislativo e judicial partilham uma quota de responsabilidade e ação.
Na minha visão preventiva e regeneradora, dever-se-ia alterar a legislação punitiva aos incendiários, transformando as penas de prisão em penas de reflorestação. Toda a área ardida teria que ser reflorestada pelo responsável material e/ou moral pelo ato criminoso, tarefa realizada em regime compulsivo, a tempo inteiro, e pela qual receberia o salário mínimo nacional. Ao total desta remuneração, seriam cativados 45% para suportar a aquisição das novas espécies arborícolas, bem como pelo usufruto da maquinaria necessária à execução da tarefa, enquanto outros 45% seriam utilizados para cobrir as indemnizações compensatórias às populações afetadas pela destruição de património pelo fogo.
No final, 10% seriam entregues efetivamente ao indivíduo pelo trabalho desempenhado, mostrando-lhe que a Nação reconhece o trabalho honesto... sendo magnânime na reação, mas irredutível na busca de cidadãos melhores e mais aptos para viver em sociedade.
A melhor e mais eficaz campanha de sensibilização preventiva contra os incêndios florestais seria, no seguimento da execução destas "penas", que os meios de comunicação social devotassem alguma da sua atenção a demonstrar as consequências reais destes atos, fossem eles irrefletidos, negligentes ou criminosamente intencionais.
Dir-me-ão que o pobre coitado incendiário é só a ponta visível de um icebergue de interesses económicos que gira à volta da indústria do fogo.
Pois... mas se não for de todo monetariamente compensatório o risco (dois ou três anos ininterruptos a reflorestar as encostas da serra da Estrela versus 30 dinheiros para trair todo um povo e queimar-lhe um dos seus bens mais preciosos - a terra), for moralmente condenável e socialmente inaceitável tanto o atentado moral como o atentado material incendiário contra pessoas e bens, quebrar-se-á na minha opinião, o triângulo do fogo florestal ou agrícola, na única variável que o ser humano pode controlar (a energia de ativação - calor).
Só assim podemos evitar que o monstro se auto-alimente e se torne, a cada ano que passa, maior e mais voraz a queimar papel-moeda na escala dos milhões do erário público... com as cenas dos próximos capítulos a acontecer já na próxima época de fogos que rapidamente se avizinha.
Um dos maiores travões aos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade (...)
A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão
mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade.
Cesare Beccaria
Um abraço,
Afonso Gaiolas
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